terça-feira, fevereiro 06, 2018

O mistério da Lava-Jato - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 06/02

Dúvidas derivam da falta de transparência dos segredos da Odebrecht. MPF recebeu material em agosto de 2017. Nunca se falou da impossibilidade de ser lido


O ótimo repórter Thiago Herdy, neste O GLOBO, publicou — no último 29 de janeiro — matéria cujo teor, importantíssimo e escandaloso, é tão eloquente sobre o estado de coisas no Brasil quanto o fato de haver pouco repercutido é representativo do espírito do tempo em que vivemos. Chama-se “Chaves para abrir segredos da Odebrecht estão perdidas” e dá conta de que o cidadão brasileiro provavelmente jamais saberá o que abriga um dos sistemas usados pelo setor de Operações Estruturadas da empreiteira para organizar a distribuição de propina. A trama se complica quando somos lembrados de que a entrega dos dados reunidos no programa — Mywebday é o nome do troço — compõe o acordo de leniência firmado pela empresa.

Há seis meses, cinco discos rígidos com cópia das informações — e dois pen drives que deveriam dar acesso ao software — chegaram ao Ministério Público Federal. Desde então, porém, nada. Nem MPF nem Polícia Federal conseguiram restaurar-lhe o conteúdo. De consistente mesmo, a respeito, apenas o movimento — em curso — para abafar a história e deixar tudo como está, e a desconfiança de que o trabalho por quebrar os códigos do programa foi deliberadamente negligenciado. Um exemplo, na melhor das hipóteses, da profundidade da incompetência em questão: o MPF simplesmente não testou as chaves de acesso no momento da entrega do material. Hoje, suspeita-se — tudo, claro, sob investigação — de que os dispositivos tenham sido apagados e reescritos.

Que tal?

Respire fundo, leitor, para lidar com a declaração a seguir: “O sistema está criptografado, com duas chaves perdidas. Não houve meio de recuperar. Nem sei se haverá. Não houve qualquer avanço nisso.”

Oi? O quê? Como é? A coisa fica especialmente confusa quando revelado o autor dessa fala — que seria blasé não fosse irresponsável: Carlos Fernando dos Santos, um dos coordenadores da Lava-Jato em Curitiba, cujo tom francamente despreocupado com o interesse público é inconsistente com o histórico sempre tão indignado do doutor, embora exato em expressar o modelo de atuação escolhido pelos procuradores da força-tarefa.

São muitas as dúvidas. Todas derivam da falta de transparência acerca do conteúdo do Mywebday. O Ministério Público Federal recebeu o material — extraído de servidor na Suíça — em agosto de 2017. Nunca se falou sobre a impossibilidade de ser lido. Desde então, conforme noticiado, a única restrição de acesso — muito problemática — tinha origem contratual: segundo uma das cláusulas estabelecidas no acordo com a Odebrecht, só os procuradores poderiam analisar os dados — em detrimento, claro, da Polícia Federal, o órgão investigador por excelência. Algumas reportagens, entre agosto e novembro do ano passado, registraram o motivo da seletividade: o MPF zelava pela exclusividade — e aqui o colunista tenta não rir — para evitar que os documentos vazassem.

Paralelamente, fontes da PF faziam circular na imprensa a avaliação de que o Ministério Público Federal — também como componente da briga corporativa por poder entre as duas instituições — impunha-se como único a custodiar as informações porque desejava o monopólio para manuseá-las, e porque a empreiteira teria receio de que temas não abordados nas colaborações premiadas de seus executivos pudessem ser explorados pelos policiais. Em setembro, em resposta a pedido da defesa do ex-presidente Lula, o juiz Sergio Moro determinou que o sistema fosse periciado pela Polícia Federal — mas também sobre os desdobramentos dessa decisão prevaleceu a desinformação.

Não daria outra. A falta de clareza a respeito do Mywebday e as legítimas desconfianças decorrentes do que é obscuro criaram as condições para a ascensão influente de narrativas falaciosas como a do petismo — e ofereceram elementos para que a defesa de Lula acusasse o MPF de tratar o software como inviolável para esconder a ausência de provas, nos documentos, que sustentassem a palavra de delatores da Odebrecht contra o ex-presidente.

Incontroverso é que o episódio — o descaso para com a substância do sistema — evidencia mais uma vez a distorção no modo como o Ministério Público Federal compreende e usa o instituto da colaboração premiada. Essa deturpação de finalidade autoriza algumas reflexões. Por exemplo: se o MPF tivesse priorizado o ingresso ao programa, talvez encontrasse conjunto de informações capaz de tornar prescindíveis os acordos de delação (ou boa parte deles) firmados com quase 80 executivos da Odebrecht. Se tivesse se dedicado, antes de tudo, a decifrar o sistema (ou a comprovar a impossibilidade de fazê-lo), quem sabe o Estado brasileiro se livrasse de ter de oferecer tantos benefícios a tanta gente; e quem sabe a colaboração premiada deixasse de ser muleta para investigadores incompetentes (e/ou apaixonados pelo palanque) e se tornasse o que é: recurso complementar. Nesse caso, é provável, teríamos mais provas e menos heróis.

Uma pergunta final e urgente: se a entrega do conteúdo codificado no Mywebday integra o acordo de leniência da empresa, e se, afinal, sua leitura for mesmo inexpugnável, isso não significará comprometer gravemente o contrato firmado entre empreiteira e Estado brasileiro? Ficará por isso mesmo?

Tem caroço a ser pescado nesse angu.

Carlos Andreazza é editor de livros

Um comentário:

Anônimo disse...

Somente a investigação do Cunha deu resultado com os dados da Suíça,foi rápida (duas semanas o pessoal da PGR veio com extratos cópias dos cadastros/fichas, movimentações) já dos demais corruptos não conseguiram nada até hoje. Por que para um funciona para os outros não?