quinta-feira, julho 07, 2016

O mundo e o condado - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 07/07


Na coluna da semana passada, comecei a apresentar as razões pelas quais muitos ingleses idosos votaram para que o Reino Unido saia da União Europeia. O texto produziu, nas mídias sociais, algumas indignações que me surpreenderam.

Segundo alguns, interpretar e quem sabe criticar os idosos ingleses, vencedores do referendo, seria um atentado contra a democracia. Não entendo. A vitória democrática de uma ideia, de um partido ou de um candidato é a prova da legalidade do caminho pelo qual eles chegaram ao poder. Essa legalidade não tem nada a ver com a legitimidade.

Depois do crash de 1929, o partido nazista cresceu até ser o maior da Alemanha e obteve 43,9% dos votos nas eleições de março 1933.

Todos os alemães deveriam aceitar o "santo" resultado das urnas e desistir de se opor? Respeitar a democracia não significa se resignar à decisão da maioria nem considerá-la legítima por ela ser legal.

Outra fonte de indignação foi meu entendimento dos sentimentos dos idosos em relação aos "jovens". Mencionei a mesquinhez dos idosos que tentam preservar qualquer coisa, na ilusão de preservarem assim suas vidas, que vão embora.

Alguém me perguntou por que os sentimentos menos nobres me parecem ser sempre os mais autênticos e relevantes. Deve ser porque li Shakespeare muito cedo na vida e compreendi, com o bobo do rei Lear, que, por exemplo, é fácil "ficar velho antes de ficar sábio".

Muitos jovens ingleses (eles também leem Shakespeare cedo na vida) perceberam os sentimentos menos que nobres de seus idosos. Duas postagens, nas mídias sociais: "Obrigado, vocês me privaram da possibilidade de viver em 27 países" e "Vocês odeiam os imigrantes mais do que amam seus filhos e netos".

De fato, no referendo do Brexit, a oposição entre idosos e jovens se sobrepôs à oposição entre o "shire" e a cidade grande. O "shire" é o condado onde vivem os hobbits do "Senhor dos Anéis": um sonho nostálgico para Bilbo e Frodo, que se arriscaram na aventura. A cidade grande é a mudança, o perigo e a diversidade (das culturas, das orientações sexuais, das éticas possíveis).

Logicamente, no "shire", os estrangeiros são suspeitos. Mas, cuidado: os habitantes do "shire" têm suas razões –que não deveriam ser esquecidas pela União Europeia, se ela quiser sobreviver.

A pequena classe média é sempre a que mais é ameaçada pela imigração: ela olha para os recém-chegados e receia se confundir com eles, precisa excluí-los (quem sabe, segregá-los) para se sentir diferente, para afirmar que ela não está no fundo do poço.

Nas primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial, chegaram à Inglaterra muitos cidadãos das ex-colônias britânicas, agora Commonwealth –Paquistão, Índia, Uganda, Quênia"¦ Se os ingleses aguentaram essa diversidade crescente nos anos 1960, por que não aguentariam agora?

A diferença é que aqueles imigrantes alimentavam, eventualmente, um ressentimento revanchista de ex-colônia, mas, ao mesmo tempo, o que mais queriam era jogar críquete e tomar chá às 17h: eles amavam e idealizavam a cultura da metrópole. Queriam se tornar ingleses.

Não foi assim com os refugiados a partir dos anos 1990, que escolhem o Reino Unido não pelo chá nem pelo críquete, mas pelo sistema de assistência pública, que é generoso com os recém-chegados.

Setenta por cento dos imigrantes desde os anos 1990 vêm de fora da União Europeia e são muito diferentes dos cidadãos do Commonwealth: eles têm um projeto de bem-estar econômico, mas não de integração. Ao contrário, chegam a manifestar sua hostilidade ao estilo de vida e aos valores europeus e ingleses.

São, em termos mais compreensíveis, uma população imigrante sem inveja. Alguém tolera ter em casa um hóspede (convidado ou não) que critique constantemente a maneira de viver dos anfitriões?

A União Europeia tem a ambição de não ser apenas um mercado comum. A Europa foi o berço dos melhores valores da cultura ocidental. Não é difícil conceber que, apesar de seus momentos mais sinistros e escuros ou por causa deles, ela queira se definir como pátria desses valores. Agora, como conciliar esse projeto com a abertura das fronteiras a quem se declara inimigo desses valores?

Essas questões verdadeiras também explicam o voto dos idosos do "shire".


 


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