sexta-feira, fevereiro 13, 2015

A conquista da hegemonia - MARIA CRISTINA FERNANDES

VALOR ECONÔMICO - 13/02

Ouvir e mostrar que se importa com o que ouve

No seu primeiro ano de governo, enfrentou tentativa de golpe, revolta estudantil contra o aumento de passagens, CPI na Petrobras, revolta de produtores agrícolas afetados pela queda de preços no mercado internacional e sindicatos inquietos com a escalada da inflação.

Dos quatro presidentes eleitos entre as duas ditaduras do século passado, Juscelino Kubitschek foi aquele que chegou ao poder com o menor número de votos (35,6%). Venceu em 15 Estados e perdeu em nove.

JK propôs anistia aos militares que o ameaçaram com golpe e abriu o Palácio do Catete para estudantes rebelados, udenistas, cafeicultores e sindicalistas. Foi o único dos civis daquele período a concluir o mandato.

Dilma é a presidente mais minoritária (41,6% no 1o turno e 51,6% no segundo) desde o golpe que abreviou a geração de Juscelino. Assim como JK, também venceu em 15 Estados, mas perdeu em 12 - nos dois turnos.

Antes de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lhe dizer ontem que precisa se abrir para os que não a elegeram, outro aventureiro já havia lançado mão da mesma advertência.

Numa passagem desapercebida de seu discurso na eleição à Presidência da Câmara, o deputado Eduardo Cunha distinguiu a vitória eleitoral de Dilma do que chamou de "hegemonia eleitoral" e disse que só esta lhe daria "hegemonia política".

A hegemonia pressupõe consentimento de interesses mais que a soma de votos. Mas o presidente da Câmara não recorre a Gramsci. Dá sua própria explicação para a ausência de hegemonia que conforma o poder da presidente: "Quando Lula e Dilma ganharam as eleições anteriores foi uma vitória tão grande que não deu margem a contestações. Desta vez o resultado foi muito mais apertado. Esses 28 partidos da Câmara são decorrência da falta de hegemonia eleitoral da presidente e do PT, que só tem 13% dos assentos da Casa".

Não se trata de um golpista. Seu projeto está condicionado à permanência da presidente no poder. Mais do que a relação entre Dilma e Lula, é aquela entre os presidentes da República e da Câmara que moldará o segundo mandato.

Cunha ganhou a eleição da Câmara com o apoio desses partidos cuja existência debita na ausência de hegemonia eleitoral da presidente. Na falta de uma polaridade no Congresso que reproduza o resultado da eleição presidencial, busca galvanizar os deputados que estão na base do governo, mas cujos eleitores não marcaram 13 para presidente.

A esse movimento de expansão de Cunha contrapõe-se o acanhamento da presidente na dificuldade de ampliar as bases de sua legitimidade. Para ficar apenas nas quatro últimas nomeações de seu governo: Secretaria de Assuntos Estratégicos, Autoridade Pública Olímpica, Caixa Econômica Federal e Petrobras.

Mangabeira Unger reforça a imagem de um governo sem talento para as ambiguidades. Edinho Silva é um tesoureiro de campanha no comando do evento internacional de maior vulto do segundo mandato. Miriam Belchior marcou sua despedida do Conselho da Petrobras com o voto contrário ao balanço que derrubou Graça Foster. Aldemir Bendine é a demonstração de que o mercado desconfia de seus próprios conceitos, como o de governança.

As escolhas sinalizam as dificuldades em se convencer a presidente a ouvir, mostrar que se importa com o que ouve e é capaz de acreditar que a grande maioria dos brasileiros, mesmo aqueles que não a escolheram, querem que cumpra seu mandato até o fim. Sem essa ausculta, pode até apelar a João Santana mas, no máximo, vai conseguir ampliar a comunidade de surdos para além do Planalto.

Age como quem parece ter gastado sua cota de concessões com a escolha de Joaquim Levy. No conjunto da obra, o ministro da Fazenda aparece como a garantia de que, resguardada a base monetária, o voluntarismo continue em voo livre.

Os dois ministros mais bem aparelhados para a negociação política, Jaques Wagner e Aldo Rebelo, foram alocados em pastas periféricas enquanto o coração do governo, a Casa Civil, continua nas mãos doministro com quem a presidente toca de ouvido a sonata do autismo.

Dilma Rousseff conseguiu convencer até a alguns de seus mais próximos colaboradores em outubro do ano passado de que ouviria mais quando, uma hora depois de a Justiça Eleitoral informar sua irreversível vantagem, disse aos brasileiros que "queria ser uma pessoa melhor".

Era apenas a presidente dando início ao terceiro turno. Passados mais de três meses do fim daquela campanha, hoje é possível se dar conta de que os termos em que a conduziu, para além dos adversários, foram prejudiciais a si mesma.

Em 2010 a presidente já havia sido apresentada ao trailer da campanha do ano passado. Mas Lula não saía do palanque e a campanha era menos arriscada. Naquele momento, rejeitou as simplificações, por burras e ingênuas.

No miolo, ainda era a mesma Dilma Rousseff que, 40 anos antes, ao deixar a prisão depois de ignominiosa tortura, protegeu-se sob o manto da honestidade intelectual, do rigor e da tarefa cumprida. As medidas ainda eram da heroica guerrilheira, mas foi com elas que entrou no jogo político.

Este manto começou a se rasgar quando Dilma optou, quatro anos depois, pelas verdades seletivas da campanha.

Esgarçou-se mais com o cerco à Petrobras e o vozerio de racionamento, rebaixamento e impedimento. A crise passou a colocar em xeque as virtudes em que se fiou lá atrás para voltar ao jogo e ir pra frente com o Brasil.

Em algum momento será aconselhada a recosturar o manto para pedir desculpas, como Lula o fez, de Paris, quando se escancarou o mensalão.

Tem três anos, dez meses e 15 dias a cumprir. Não é uma sentença. É a missão que o eleitor, livre e soberanamente, lhe conferiu. Não é a primeira nem será a última presidente a começar um mandato sob crise e não há razão objetiva que a impeça de superá-la.

Carlos Araújo, ex-marido e uma das pessoas mais a influenciam, costuma presentear a ex-mulher com livros sobre Getúlio Vargas, brasileiro de sua predileção, mas é Juscelino quem parece faltar à sua cabeceira.

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