domingo, agosto 10, 2014

Figuraças - HUMBERTO WERNECK

O ESTADO DE S.PAULO - 10/08


Tem problema que não é da minha terapia, pensei eu, com alívio, ao presenciar aquele papo entre a dona Alzira e sua vizinha de estimação. Embora amigas, ou talvez por isso mesmo, não havia jeito de se porem de acordo sobre a mais indiscutível das questões.

O assunto, que poderia ser qualquer um, era a depressão, e a vizinha, farejando provocação num comentário de dona Alzira, rebateu de primeira, veemente:

- Sou contra!

- Contra o que, minha filha? - saltou de lá a outra, já na ofensiva.

- Contra a depressão! Sou contra a depressão!

O surpreendente posicionamento fez baixar na sala um silêncio tão espesso que quase se poderia tomá-lo na mão, até que dona Alzira, incapaz de não dar um troco, retrucasse:

- Eu acabo de sair de uma depressão, e quer saber? Lá estava bem melhor!


*

Cidadão português transplantado para o Rio de Janeiro aos 40 e muitos anos, Miguel adotou tão radicalmente a nova pátria que no 7 de Setembro, para pasmo dos vizinhos aqui nascidos, nunca deixa de hastear bandeira brasileira no seu sítio em Inhaúma. A certa altura, já naturalizado, deu de achar que a cerimônia cívica, ainda que privada, exigia também o Hino Nacional. Na primeira vez, como ainda não soubesse letra nem música, recrutou um dos netinhos.

- O que tu sabes cantar? - indagou.

- O periquitinho verde, respondeu o menino - e foi ao som de uma versão esganiçada da marchinha de Antônio Nássara e José de Sá Róris, hit do carnaval carioca de 1938, que o auriverde pendão subiu mastro acima naquele 7 de Setembro.


*

O mesmo Miguel, ao irmão Arnaldo, quando, recém-chegados ao Rio, entraram num mictório público no centro da cidade e o mais novo se pôs a reclamar dos estampidos provenientes de uma das cabines:

- O que tu queres por um vintém? Ouvir a Tosca?


*

Este outro tem horror a mesquinharias. Arrepia-se todo à simples ideia de aproveitar resto do que quer que seja - nenhum espetáculo humano é mais desprezível, sentencia, do que um sujeito a aplicar toda a força dos polegares num beliscão tremelicante para extrair o que ainda possa jazer no exaurido tubo de pasta de dente. Ou aquele que, de garfo em punho, caça no prato já despovoado um petit-pois remanescente, um derradeiro grão de arroz.

Aos desavisados, suas implicâncias podem dar a impressão de que se trata de um magnata. Quem lhe dera! O saldo bancário é de classe média, tendendo a média-baixa - mas sua etiqueta manda enjeitar alguma coisa, qualquer coisa, ainda que seja o último naco de camarão, num gesto que, além de desapego, a seu ver denota finesse. Em casa, num apertado fim de mês, ele até admite traçar um mexidinho, desde que não haja estranhos à mesa e que a gororoba não se faça à base de sobras de refeições pretéritas: exige que se cozinhe expressamente cada componente dessa "mixórdia brasileira", como costuma dizer, para só então misturar. No escritório, já apostrofou um colega flagrado na operação de esquentar a ponta da caneta esferográfica a fim de amolecer a tinta e ordenhar uma última gotícula.

Em alguns casos, é verdade, não lhe falta razão quando reage indignado ao que considera avareza, sovinice, somiticaria. Aquela sua irmã, por exemplo, que à noite anda em braille pela casa para poupar energia elétrica, que disfarça na salada a folha já meio escurecida de alface e que foi pilhada quando lavava o coador de papel para mais um café. Pior que todos, o cunhado que reutiliza o fio dental.

Numa roda de filhos de amigos, vendo circular um baseado, ele invectivou o grupo, não por fumar maconha, mas por "fazer boca de anão" - expressão com que designa o ato de franzir os beiços, dando-lhes o aspecto de um código de barras, no esforço de sugar até o fim o resto do resto.

Há um item em que o camarada se supera: é capaz de abandonar a sala de concertos, pisando duro, se o pianista, tendo à disposição dos dedos um teclado inteiro, não o "otimiza", quer dizer, não usa todas as 88 teclas - "todas as brancas e todas as negras", especifica o nosso homem, sem, claro, economizar no pronome indefinido.

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