sexta-feira, julho 18, 2014

O país das pequenas desobediências - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 18/07


Nossa tolerância às pequenas corrupções do dia a dia leva à tolerância com as grandes corrupções do mundo político



Já disse o professor Belmiro Valverde – por anos colunista da Gazeta do Povo, e recentemente falecido – que o Brasil “não é para amadores”. Aliás, deu este nome ao seu mais antológico e referencial livro, traduzido em várias línguas e frequentemente citado em estudos acadêmicos mundo afora. Ele tinha razão em dar no emblemático subtítulo a pista para nos tornarmos tão incompreensíveis diante dos olhos civilizados: somos “a terra do jeitinho”, dizia Belmiro.

De fato, é preciso ser “profissional” para entender a razão de, um ano depois de inúmeros brasileiros terem tomado conta das ruas do país para exigir das autoridades mais respeito às leis e aos direitos sociais, uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas nos mostra que o brasileiro médio está, agora, mais disposto a infringir leis do que no passado ainda tão recente.

Segundo o estudo, desobedecer a regras de conduta é uma opção natural e adotada pela grande maioria da população. De acordo com a segunda edição do Índice de Percepção do Cumprimento da Lei (IPCL), elaborado pela Escola de Direito da FGV, entre 2013 e os primeiros meses de 2014 aumentou a quantidade de pessoas que admitem cometer pequenas ilegalidades e infrações. Numa escala de zero a dez (em que zero representa o desrespeito completo às leis e dez representa a honestidade total), o índice de 2014 recuou para 6,8 em relação aos 7,3 aferidos em 2013. A pesquisa entrevistou 3,3 mil pessoas em sete estados e no Distrito Federal.

Os entrevistados nem mesmo se sentem culpados pelas infrações que cometem. Os comportamentos abordados vão desde posturas mais “inofensivas”, como atravessar a rua fora da faixa de pedestres, até outras que podem ter graves consequências, como dirigir após ingerir bebida alcoólica; comprar produtos piratas, subornar agentes públicos para evitar multas, jogar lixo fora do local indicado e atrapalhar vizinhos com barulho também figuraram na pesquisa. A culpa, dizem os entrevistados, é das próprias leis, no seu entendimento “falhas”, e das autoridades constituídas – as primeiras a desrespeitá-las e não serem punidas pelas transgressões.

Embora as leis de trânsito sejam as mais citadas como objeto de mais frequente desobediência, inúmeras outras situações são resolvidas por meio de modos aparentemente inocentes e admissíveis de burlar regras previstas na legislação. Na interpretação dos autores da pesquisa, dá-se, neste caso, um fenômeno inusitado: as pessoas que cometem delitos se amedrontam menos com a possibilidade de virem a ser punidas do que com a imagem social negativa que suas transgressões possam lhes causar. Mais cruel e inibidora é a opinião alheia – dos vizinhos incomodados com o som alto fora do horário, por exemplo – do que a eventual intervenção dos agentes da lei encarregados do seu cumprimento.

Comportamentos como estes simbolizam o grau de desrespeito a que os brasileiros chegaram em relação às instituições e aos seus mandatários. Se representantes encastelados nos palácios e tribunais podem burlar os mandamentos legais (que, aliás, juraram obedecer) e nada ou muito pouco lhes acontece, por que o cidadão comum estaria obrigado à sua fiel observância?, raciocinam.

Trata-se de um círculo vicioso que a pesquisa da FGV escancara: nossa tolerância às pequenas corrupções do dia a dia leva à tolerância com as grandes corrupções do mundo político, que por sua vez desanimam o cidadão que tenta levar a vida de forma honesta, e assim sucessivamente. Os eleitos são reflexo dos eleitores, e vice-versa.

Este ciclo precisa ser rompido. Claro que, para isso, se exigem mudanças culturais e comportamentais profundas e que não se dão do dia para a noite. Mas é preciso começar, e espalhar essa noção de cidadania àqueles que nos são mais próximos. E, além disso, há passos que podem ser cumpridos no curto prazo e com datas marcadas: dos bons cidadãos, chamados às urnas a cada dois anos, se espera que escolham como nossos representantes políticos pessoas realmente comprometidas com a ética e com o respeito às leis.

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