quinta-feira, julho 31, 2014

O silêncio dos inocentes - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 31/07


Uma cultura pode morrer de sua própria covardia em defender as ideias que ela inventa e promove


O movimento Estado Islâmico (EI) controla uma parte consistente do território que pertencia previamente à Síria e ao Iraque (sei que "consistente" é vago, mas as cidades passam de mão em mão a cada dia). Nesse vasto território, o EI proclamou um califado, e seu líder, em 11 de julho, ordenou a mutilação genital de todas as mulheres entre 11 e 46 anos.

A mutilação genital consiste na ablação do clítoris e, em algumas tradições, de parte dos lábios da vagina. A operação geralmente é feita sem anestesia e sem condições de assepsia. Essa tortura com consequências potencialmente mortais garantiria que as mulheres não sintam (mais) prazer sexual, ou seja, como noticiaram as agências de imprensa (Folha de 25/07), evitaria "a expansão da libertinagem e da imoralidade" no sexo feminino.

Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), a medida do califado pode atingir 4 milhões de mulheres.

Será como em julho de 1994, quando assistimos de longe, indignados e resignados, ao massacre de mais de meio milhão de pessoas da etnia tutsi, em Ruanda?

Será como em 1995 (de novo, em julho), quando assistimos ao massacre de Srebrenica, na Bósnia? Neste caso, um mês depois, o bombardeio dos sérvios-bósnios pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) colocou um fim à guerra da Bósnia. Foi tarde para os 8.000 de Srebrenica, mas foi ao menos isso.

Meus furores intervencionistas são raramente abstratos. Há intervenções impossíveis porque é dificílimo tomar partido, e outras que custariam mais vidas do que salvariam. Também me envergonha, na hora de me indignar, o fato de que os que se armariam e arriscariam sua vida seriam outros, mais jovens do que eu.

Mesmo assim, penso que o genocídio em Ruanda, em 1994, poderia ter sido evitado e que o bombardeio das posições dos sérvios-bósnios em 1995 poderia ter acontecido antes, evitando o massacre de Srebrenica.

No caso de Ruanda, foi dito mil vezes que o Ocidente deixou o horror acontecer porque o coração da África está longe, geográfica e culturalmente. Da mesma forma, foi dito que a Otan interveio na Bósnia por se tratar de um horror "em casa", na Europa.

Mas a intervenção na Bósnia tornou-se possível e "necessária" também por uma outra razão, um pouco mais complexa.

Na guerra da Bósnia, as grandes vítimas eram os bósnios muçulmanos, ameaçados de extermínio pelos sérvios-bósnios (ortodoxos). Atrás de qualquer consideração geopolítica, os membros europeus da Otan (sobretudo Alemanha, França e Inglaterra) podiam enxergar, no ódio dos sérvios-bósnios, uma caricatura do preconceito de suas populações contra os muçulmanos imigrantes.

Ou seja, talvez a gente seja especialmente motivado a intervir contra quem pratica horrores dos quais nós mesmos receamos ser capazes. É policiando os outros que a gente luta contra nossos próprios demônios.

Se a ordem do califado me indigna tanto é porque reconheço a sua estupidez: ela é a mesma que, apenas 200 anos atrás, levava psiquiatras europeus a cauterizar com ferro quente o clítoris de meninas que se masturbavam com uma frequência que pais e padres achavam excessiva.

Houve uma época (recente --e nem sei se acabou) em que o desejo feminino nos fazia horror, e a gente estava disposto a qualquer coisa para silenciá-lo. É esse passado que nos daria o direito de intervir.

Não se trata de querer abolir uma diversidade cultural. Certamente há mulheres, no califado, dispostas a ser mutiladas para continuar pertencendo plenamente à cultura na qual elas vivem. Mas o que acontecerá conosco se escutarmos os gritos das que não concordam e deixarmos que se esgotem, até que reine o silêncio dos inocentes sacrificados?

Em Veneza, no Teatro La Fenice, três semanas atrás, assisti a uma apresentação (única) de "Hotel Europa", de Bernard-Henri Lévy (publicado pela editora Marsilio numa edição bilíngue, com textos em italiano e francês). É o monólogo de um intelectual que, num hotel de Sarajevo, prepara uma conferência impossível sobre a Europa e seus valores. Lévy foi marcado pela sua presença na Bósnia durante os anos da guerra e acredita na necessidade moral de intervir nos horrores da casa dos outros.

Concordo ou não, tanto faz; de qualquer forma, saí da peça com a convicção de que uma cultura pode morrer de sua própria covardia em defender as ideias que ela inventa e promove. E nossa cultura é ameaçada por esse destino: ela tem, ao mesmo tempo, um repertório fantástico de ideias e uma grande timidez na hora defendê-las --até porque uma dessas ideias é que cada um deve ser livre de pensar como quer.


O dinheiro e a informação - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 31/07


Qualquer analista diria que um segundo mandato da presidente Dilma não seria bom para o investidor comum



Jornalistas, pelo menos aqui no sistema Globo, não podem recomendar investimentos financeiros. Jornalistas e comentaristas de economia não podem nem ter ações de qualquer empresa, pela ética e pela prática. O profissional pode ser isento, mas as aparências contam aqui. O público terá todo o direito de desconfiar do comentário, se souber que um comentarista está vendendo ou comprando ações de uma estatal.

É a mesma coisa com os jornalistas de gastronomia. Não podem aceitar uma boca-livre e depois comentar sobre aquele restaurante.

Já houve muita fraude e muito comportamento errado entre jornalistas, aqui e lá fora. Como prevenir? Uma hipótese seria impor severa regulamentação legal para o trabalho dos jornalistas — uma péssima saída porque levaria fatalmente a uma severa restrição à liberdade de imprensa. O princípio maior é que a imprensa tem de ser livre. Se é boa ou não, isso depende da sociedade, do público que vai consumir ou não esta ou aquela publicação.

Por isso, veículos sérios adotam códigos de ética. O controle interno é o melhor. Com o tempo, o público reconhece o caráter do veículo. Distingue entre o chapa-branca e o isento, entre o oportunista e o sério, entre o que quer fazer dinheiro a qualquer custo e o que quer fazer dinheiro com o jornalismo sério.

Sim, claro, o jornalismo sério se equivoca não raras vezes. Mas volta ao assunto, reconhece, refaz. Tinha que ter alguma vantagem isso de ter de produzir notícia todos os dias...

Resumindo, jornalistas podem tratar de qualquer tema, podem dizer que uma empresa vai bem — e mostrar os dados — ou que um setor vai mal, mas não devem dizer “compre isto”, “venda sua casa e aplique em juros”, coisas assim.

É diferente a situação dos analistas de investimentos. O cliente de um banco precisa de orientações específicas.

Analista de investimento é uma profissão. “Broker” também. Para montar um grupo de investidores e formar, por exemplo, um clube de ações, o sujeito precisa de licença e autorização da Comissão de Valores Mobiliários. Idem para recomendar aplicações.

A regulamentação, aqui e lá fora, também resulta de equívocos e malfeitos cometidos ao longo do tempo. O mais comum era — e pode ser — o banco indicar investimentos que serão ruins para o investidor e bons para o banco. Imagine que o banco, na sua Tesouraria, comprou ações da Petrobras e quer se livrar delas. Se sair por aí dizendo que os papéis da estatal vão subir e, para ajudar um pouco, colocar um “laranja” para comprar lotes desses papéis e forçar uma valorização inicial, trata-se de um grande roubo.

Tem lei e regulamentação para tentar administrar o conflito de interesses que pode haver entre o cliente/investidor, o banco e o dono do banco.

Por isso, o setor do banco que se relaciona com os clientes, informando e sugerindo aplicações, tem que ser independente. Deve ser assim num mercado sério. O Brasil tem melhorado nesse aspecto, com regulamentações e prática. Uma delas é a ampla publicidade: analistas de investimentos vêm a público todos os dias com seus relatórios. Recomendam compra ou venda de ações, indicam qual o preço alvo. Os relatórios vão para os clientes e frequentemente são distribuídos para a imprensa. Como fazem as consultorias nacionais ou estrangeiras.

Ora, é evidente que a política tem a ver com a economia. As políticas do governo Dilma provocaram enorme desvalorização das ações da Petrobras, o caso mais forte. Questionada sobre isso, a presidente já argumentou que as estatais não trabalham para especuladores — e colocou assim no mesmo saco os grandes especuladores, os trabalhadores que colocaram seu FGTS na estatal e o investidor comum que simplesmente pensava em juntar algumas economias.

Tudo considerado, qualquer analista diria que um segundo mandato da presidente Dilma não seria bom para o investidor comum. Mesmo admitindo que a atual gestão da Petrobras pode trazer resultados a longo prazo, o fato é que, no momento, a companhia não coloca o lucro e o interesse do investidor minoritário como objetivo central.

Foi o que disse o pobre ou a pobre analista do Santander. E é o que estão dizendo todos, repetindo, todos os demais analistas há muito tempo. Normal.

Ruim foi a reação do governo, escolhendo um alvo fácil para se declarar vítima de terrorismo, em vez de contestar os dados. Ameaçou assim a liberdade de informação.

Pior foi a reação da direção do banco, que pediu desculpas ao governo e demitiu o(a) analista. Disse que ele(a) fizera coisa errada. Quer dizer que o certo é comprar ações quando aumentarem as chances de Dilma? Os clientes do banco foram enganados nos últimos relatórios ou estão sendo enganados agora?

E o dono do banco, Dom Emilio Botin, defendeu o seu negócio. O governo é regulador e muito bom cliente. Uma ordem, e governos, prefeituras e entidades públicas podem fechar contas com o Santander. Resumo: prevaleceram o ataque à liberdade de informação e de fazer negócios; e o interesse do banqueiro.

Promessas e programas para 2016 - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 31/07


Candidatos anunciam projetos até interessantes, mas promessas têm de sobreviver a 2015


AÉCIO NEVES prometeu uma "simplificação tributária" e anunciou a meta de levar de 18% do PIB para 24% do PIB a taxa de investimento da economia (que se gaste esse tanto da renda nacional em ampliação da capacidade produtiva). Foi o que disse a empresários, em sabatina promovida pela Confederação Nacional da Indústria.

Não é razoável exigir do candidato detalhes de programas em entrevista com tantos assuntos. Mas fica a curiosidade de saber como o senador tucano trocará em miúdos suas promessas.

"Simplificação tributária" pode significar de quase nada a um excesso de ambições. A meta de levar o investimento a 24% do PIB em parte não depende do governo, em parte depende de um governo muito capaz.

Os dois assuntos estarão especialmente enredados nos próximos anos. Será também especialmente difícil lidar com tais problemas, pois o governo chegou à pindaíba, vide o resultado das contas federais do primeiro semestre, anunciado ontem: o pior desde o ano 2000.

Simplificação tributária pode significar a medicação do manicômio burocrático dos impostos. É importante, difícil, mas não custa muito além de inteligência e trabalho.

Simplificar, reduzir e esclarecer procedimentos já seria um ganho de produtividade. Mas é preciso que exista uma autoridade poderosa a cargo da tarefa, com o apoio presidencial. Os burocratas são uma montanha no meio do caminho. O governo de Dilma Rousseff fez algum progresso na redução da burocracia nos portos. Não fez mais porque, mesmo com regulamentações e normas aprovadas, a coisa empacou em burocratas e na descoordenação do governo.

Simplificação tributária pode significar também algo como reforma tributária. Trata-se de tarefa politicamente muito mais complicada (envolve Estados e municípios) e que exige algum dinheiro no caixa do governo, o que não haverá nos próximos dois anos.

Uma reforma tributária mesmo mínima, no presente caso do Brasil, exige que o governo federal compense Estados e municípios (banque perdas de receita devida à racionalização dos tributos). Pode implicar perda direta de receita federal, pois é difícil calcular, a princípio, o efeito de impostos novos.

Repita-se: não haverá dinheiro, pois o Brasil crescerá pouco em 2015 e talvez em 2016. Não haverá dinheiro, de resto, porque o governo tem de aumentar sua poupança, de modo a colocar a economia nos trilhos elementares (isto é, tem de poupar mais a fim de ajudar a controlar a inflação, baixar juros etc).

Aliás, medida razoável e talvez inevitável do próximo governo será aumentar algum imposto de modo a fechar as contas com sobra bastante para evitar o aumento da dívida pública.

A perspectiva de inflação e juros mais baixos (custos menores e estabilidade) é uma condição mínima para a retomada da confiança empresarial e dos investimentos.

Em suma, não haverá condição de reforma tributária mínima ou de aumento da taxa de investimentos sem um plano imediato que coloque ordem nas contas públicas e que crie a expectativa de baixa gradual da inflação e juros. Sem passar por essa primeira

Economia vulnerável - CELSO MING

O ESTADÃO - 31/07


O governo Dilma passou todos esses meses argumentando que a crise externa é quase a única responsável pelo baixíssimo desempenho da economia; Mas quando o FMI acentua a vulnerabilidade do Brasil à crise externa, o governo não gosta e desqualifica a conclusão

O governo Dilma passou todos esses meses argumentando que a crise externa é quase a única responsável pelo baixíssimo desempenho da economia. Mas quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) acentua a vulnerabilidade do Brasil à crise externa, o governo não gosta e desqualifica a conclusão.

Pois terça-feira, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, não gostou de que o Fundo Monetário Internacional observasse em relatório que “o Brasil é moderadamente frágil e corre o risco de se deteriorar rapidamente em um cenário de acentuada e prolongada queda no preço das commodities”.

O que o FMI afirmou não é muito diferente do que a própria presidente Dilma disse no dia anterior. Ela rechaçou o argumento de que o baixo crescimento do PIB ao longo de seu mandato se deve a escolhas equivocadas de política econômica e o atribuiu, inteiramente, à crise externa. E mais, disse que o presidente Lula errou quando minimizou os efeitos internos da crise externa. Foi quando insistiu em que o efeito interno foi apenas “uma marolinha”.

O Brasil é sim uma economia relativamente vulnerável. Tanto é vulnerável que está hoje mal na foto, atolada num avanço do PIB insignificante, inflação que vai chegando aos 7,0% ao ano, um rombo externo crescente e um câmbio relativamente achatado e estável apenas porque o Banco Central vem despejando US$ 80 bilhões em seis meses para sustentar a cotação do dólar.

Quando o FMI diz que o Brasil está mais vulnerável, não está dizendo coisa muito diferente do que tem sido dito também pelas agências de classificação de risco quando apontam para uma perda de qualidade dos títulos da dívida brasileira.

A discordância cabível diz respeito à razão dessa vulnerabilidade. E, aí sim, vemos que as opções de política econômica adotadas nos últimos anos é que minaram a capacidade de resistência da economia do Brasil à crise.

A fragilidade e a enorme perda de capacidade de competição da indústria brasileira são consequência do mesmo fenômeno. Assim, num cenário de forte queda dos preços das commodities que derrube as exportações e aumente o rombo nas contas externas, não é possível esperar que a indústria compense eventual enfraquecimento das receitas de moeda estrangeira obtidas com essas exportações de produtos primários.

Quando o governo não gosta de uma análise, parte logo para a desqualificação, como se feita por quem não entende, por um sub do sub. No caso do relatório do FMI, Mantega preferiu dizer que é conclusão de um trabalho não assumido pela direção do FMI.

Repete-se aqui o mesmo tratamento dado pelo governo à avaliação feita por um analista do Banco Santander que apenas avisou aos investidores de que uma melhora da presidente Dilma nas pesquisas de intenção de voto tenderia a produzir desvalorização dos ativos brasileiros, principalmente das ações.

O governo parece descobrir tardiamente que a desarrumação da economia é um tema que começa a ser usado eleitoralmente pela oposição. No entanto, em vez de blindar a economia brasileira com políticas consistentes ou de tomar decisões que revertam o baixo nível de confiança, o governo prefere negar a desarrumação e desqualificar quem as denuncia.


Vítima e culpada - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 31/07


Abre-se agora para a Argentina um cenário de incertezas. Essa é uma moratória diferente de todas as outras. O país está pagando aos governos credores através do Clube de Paris, pagou ao FMI, tentou pagar aos credores da dívida reestruturada e está sendo impedida pela Justiça americana. A Argentina é vítima e culpada de seu próprio drama e hoje é uma economia em calote externo.

A solução desesperada apresentada pelos bancos, de comprar 100% da dívida dos fundos chamados abutres, dá um enganoso alívio. Esses fundos que ganharam na Justiça são apenas 10% dos que estão de fora. Têm a receber US$ 1,3 bilhão. Mas existem outros investidores só esperando o momento para requerer a mesma coisa na Justiça. Os bancos não têm fôlego para tanto.

A Argentina é culpada porque hostilizou os credores, politizou o que deveria ser técnica e habilmente conduzido, criou arestas desnecessárias e abriu o caminho para uma decisão contra ela. É vítima porque ficou prisioneira de um sentença inflexível de um juiz distrital americano e de especuladores bem sucedidos. Não houve recursos a uma corte de apelação intermediária, o governo argentino foi direto à Suprema Corte, que decidiu que não era seu assunto. O ministro da economia, Axel Kicillof, ainda tentava convencer que, apesar de não haver acordo, o país não está em default. Quer, pelo visto, uma prorrogação ao fim do tempo regulamentar da partida.

Sem o acordo da dívida com os fundos, todos perdem. A Argentina já está em recessão e com inflação alta, a crise vai se aprofundar porque ela terá mais dificuldades de captação no exterior. E não apenas o setor público terá problemas, mas também as empresas e os bancos argentinos. A classificação de risco de calote técnico emitida pela S&P afastará qualquer emprestador do país.

Perdem também os credores da dívida reestruturada, que sofreram o golpe com o calote em 2001, decretado pelo presidente relâmpago Adolfo Rodriguez Saá, que ficou apenas uma semana no cargo. Eles foram hostilizados em 2005, na primeira etapa de negociação com o então presidente Néstor Kirchner, e acabaram entrando num acordo, que foi ampliado em 2010. Ao fim, já haviam concedido um desconto que oscilou entre 40% e 73% dependendo do título. Estão, agora, na esquisita situação de ter a receber, o devedor tentar pagar, e a Justiça impedir que o dinheiro chegue a eles.

Perde a Justiça americana sobre a qual pesa agora uma enorme dúvida. O foro de Nova York pode ser a jurisdição arbitral escolhida nas negociações de dívida soberana? Como, se a decisão de um único Juiz encurrala um país?

A Argentina em calote não é um bom cenário para o Brasil. Não haverá contágio financeiro e cambial, como em outras crises de dívida, mas todos os efeitos vão piorar um pouco mais a fraca conjuntura brasileira. O comércio entre os dois países foi de US$ 14 bilhões no primeiro semestre, uma queda de 20% sobre o mesmo período do ano passado, ou US$ 3,6 bilhões a menos. O Brasil exporta principalmente automóveis, máquinas e equipamentos, manufaturados, em geral. Nada disso eles comprarão em período de dificuldades.

As reservas cambiais da Argentina são de US$ 27 bilhões. Em julho de 2011 estavam em US$ 52 bilhões. A péssima administração das reservas produziu uma forte redução de dólares em caixa e deixou-os mais vulneráveis no pior momento. Por isso, com as portas do mundo fechadas, e um processo de fuga de capitais, a tendência será importar menos e colocar barreiras ao comércio. Como o Brasil tem negociado acordos comerciais com outros países e blocos através do Mercosul, a crise de um dos parceiros torna ainda mais difícil qualquer avanço.

Sinuca de bico - DORA KRAMER

O ESTADÃO - 31/07


O vice-presidente Michel Temer teve uma ideia. Compartilhou com a presidente Dilma Rousseff, que achou ótima a receita para conduzir a eleição de São Paulo ao segundo turno a fim de juntar forças na etapa final para, aí então, interromper os 20 anos do PSDB no poder.

Ficou acertado que o Planalto teria dois candidatos ao governo do Estado. Alexandre Padilha, petista, o oficial. Paulo Skaf entraria na disputa como linha auxiliar do PT. Temer se empenhou pessoalmente na candidatura, em articulação que tinha a vantagem ainda de afastar o PMDB da área de influência dos tucanos.

Tudo bem organizado, só faltou combinar com Paulo Skaf que seu papel era de figurante. Disposto a disputar para valer, o empresário adaptou o roteiro original e aquilo que era para ser uma solução virou um problemão para Dilma, Temer e o PT em São Paulo.

Ele simplesmente se recusa a fazer a dobradinha que Michel Temer prometeu a Dilma. E diz isso sem a menor cerimônia. Para ele o jogo não é de dois contra um, mas de três contra três. Vale dizer, considera-se tão adversário do PT quanto do PSDB.

Por isso não apenas se recusa a fazer campanha para a presidente Dilma Rousseff como declina nem sempre de maneira gentil o seu apoio. A razão está nas pesquisas: rejeição à presidente de 35% no âmbito nacional; 47% no Estado de São Paulo e 49% na capital.

Dá a entender que prefere andar só que mal acompanhado. E assim parece ter entendido o PT ao reagir com raiva e ameaças, com seus dirigentes regionais chamando o candidato de ingênuo e equivocado. O prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho, avisou: "Ele vai arcar com as consequências".

O vice Michel Temer cobra fidelidade de Skaf, lembra que deve a ele sua candidatura e mostra a faca. Diz que o PMDB de São Paulo estará com Dilma de qualquer maneira e acena até com uma possível intervenção na seção regional do partido se houver resistência.

A intenção declarada é a de "isolar" o candidato do partido a fim de forçá-lo a mudar de posição. Muito bem: com todo o respeito que uma articulação atrapalhada oposicionista não merece ninguém provou que a força do porrete é a forma mais convincente de atrair o opositor.

Dê motivo. Razões metodológicas à parte, o motivo da expressiva queda (30%) no número de eleitores com idade entre 16 e 17 anos é o simples fato de o voto não ser obrigatório nessa faixa etária.

Segundo os dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral, divulgados nesta terça-feira, eles eram 2,4 milhões em 2010 e agora são 1,6 milhão. Pela Constituição, votam se quiserem, sendo obrigados apenas a partir dos 18 e até os 70 anos.

Fosse o voto facultativo para todos, os políticos não teriam mercado garantido nas demais faixas de idade e precisariam necessariamente estimular o eleitorado a participar. Como não têm essa necessidade, não se preocupam especialmente com o jovem, que poderia ser incentivado desde cedo a ir às urnas espontaneamente.

Para isso, porém, precisaria ter bons e substantivos motivos.

Efeito colateral. A reação do governo ao cenário do Banco Santander pode de fato inibir analistas de mercado de traçar perspectivas da economia ligadas ao resultado das eleições.

Mas poderá também ter despertado a percepção geral sobre a vocação intervencionista e o gosto pelo autoritarismo dos atuais ocupantes do Palácio do Planalto e adjacências.

'Palmômetro'. Pelo critério das palmas dos empresários, a presidente Dilma Rousseff saiu em desvantagem da sabatina de Confederação Nacional da Indústria em relação aos adversários.


Quadro em mutação - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 31/07
No chamado Triângulo das Bermudas - Rio, São Paulo e Minas - que reúne 42% do eleitorado nacional, a situação revelada pela primeira pesquisa do Ibope encomendada pela TV Globo mostra um quadro em mutação desfavorável à presidente Dilma Rousseff, embora ela esteja numericamente na frente em dois dos três estados.
Mas o candidato oposicionista Aécio Neves caminha para vencer em Minas, onde os candidatos petistas sempre ganharam nas últimas eleições, e está em empate técnico com Dilma em São Paulo, onde o PSDB tem o predomínio político. Nos dois estados, é provável que o maior partido de oposição vença as eleições para os governos locais e para o Senado, mostrando que a chapa oposicionista tem força suficiente para se impor ao PT.

Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin pode vencer no primeiro turno, e o candidato petista, Alexandre Padilha, patina nos 5%. Para o Senado, o ex-governador José Serra continua na frente. O PSDB tem vencido regularmente a eleição para presidente em São Paulo, mas a diferença a seu favor vem diminuindo: Fernando Henrique abriu cerca de 5 milhões de votos frente a Lula em 1994 e 1998, em 2006, Alckmin venceu por uma margem de 3,8 milhões de votos, e Serra, em 2010, por cerca de 1,8 milhão.

Esta será a primeira eleição presidencial desde 1994 em que não há candidatos paulistas na disputa e, por enquanto, a performance de Aécio Neves tem sido boa, mostrando que o eleitorado tucano e a máquina partidária está engajada na campanha. O candidato do PSB, Eduardo Campos, em que pese a boa votação que sua vice, Marina Silva, teve em 2010 no estado e ser ele aliado de Alckmin, não tem boa aceitação, com 6% das intenções de voto.

Em Minas, o candidato tucano, Pimenta da Veiga, já está em empate técnico com Fernando Pimentel do PT, que até pouco atrás liderava com folga a corrida para o governo. Quando identificado como o candidato de Aécio, Pimenta da Veiga sobe nas pesquisas. O ex-governador Antonio Anastasia lidera a corrida para o Senado, com vantagem sobre o candidato do PMDB, Josué de Alencar.

Provavelmente, portando, a presidente não repetirá a vitória que teve em 2010, quando venceu em Minas por diferença de 1,7 milhão de votos.

Se, além de impedir essa diferença a favor de Dilma, o candidato tucano confirmar uma vitória com cerca de 3 milhões de votos na frente, estará compensando a eventual diferença que a presidente possa ter no Nordeste, que continua sendo sua fortaleza.

Mas a situação da presidente no Nordeste também não será a mesma de 2010, quando tirou cerca de 11 milhões de votos de diferença no primeiro turno. Só em Pernambuco, ela perderá a diferença de quase 2 milhões de votos que teve, pois o ex-governador Eduardo Campos já está empatado com ela na pesquisa, e tudo indica que deve reverter essa diferença a seu favor. Em Pernambuco, a candidata à reeleição, Dilma Rousseff, aparece com 41% das intenções de voto, tecnicamente empatada, mas numericamente à frente do candidato Eduardo Campos, que tem 37% das menções.

Enquanto em Minas Eduardo Campos aparece com meros 5% de intenção de votos, em Pernambuco é Aécio que tem apenas 5%. No Estado do Rio de Janeiro, onde a presidente Dilma teve votação expressiva em 2010, ela continua muito à frente de seus adversários, com 35% dos votos contra 15% para Aécio e apenas 5% para Campos. Mas a máquina do PMDB, que está trabalhando para o candidato tucano, começa a se mexer, colocando o governador Pezão, com 15% dos votos, em virtual empate técnico com o candidato Garotinho, do PR, que aparece com 21% das intenções de voto, e Marcelo Crivella (PRB) com 16%. Lindberg Farias, do PT está empacado nos 11%.

Garotinho, porém, tem um problema que coloca um teto em suas pretensões: ele é também o candidato com maior rejeição, citado por 44% dos eleitores. 

Profecias e realidade - ELIANE CANTANHÊDE

FOLHA DE SP -31/07


BRASÍLIA - Ou a presidente Dilma Rousseff deu azar, ou houve uma conspiração. Enquanto ela dizia que a economia vai muito bem, obrigada, e fazia um apelo na CNI para que empresários não se deixem levar por "profecias pessimistas", novas notícias que minam esse discurso viravam manchetes nos jornais online.

Logo ontem, quando Dilma, Aécio Neves e Eduardo Campos faziam contorcionismos para impressionar bem o empresariado, veio a informação de que a recuperação econômica dos EUA está sendo mais forte do que previsto. A potência cresceu a uma taxa anual de 4% no segundo trimestre, o que pode levar o crescimento a 2% no ano. A expectativa para o Brasil é em torno de mísero 1%.

No discurso de Dilma, o Brasil amarga esse pibinho por causa das potências, das influências externas, da crise de 2008 e, afinal, gente, porque todo mundo está crescendo pouquinho mesmo. A novidade dos EUA mostra que não é bem assim. E isso, claro, embaralha os pretextos da presidente candidata para os resultados pífios da economia. É preciso arranjar outros pretextos rapidinho.

E foi justamente durante o discurso de Dilma na CNI que o Tesouro Nacional --veja bem, que é do governo, chefiado pela presidente-- deu uma outra má notícia, pior ainda para ela e para o empresariado: o saldo entre receitas e despesas do governo federal no primeiro semestre foi o pior dos últimos 14 anos. Ou seja, com crescimento tão raquítico, a arrecadação cai; com o ano eleitoral, a gastança pública sobe.

Daí que o governo promete, promete, mas não tem como cumprir o compromisso de poupar R$ 80,8 bilhões em 2014, simplesmente porque, na metade do ano, só conseguiu atingir 21% dessa meta. E não porque seja bonzinho, porque sacrifique índices para favorecer os pobres da nação, mas porque não está gerindo adequadamente a economia, nem os gastos.

O empresário sabe distinguir "profecia pessimista" de constatação.


Anão diplomático - DEMÉTRIO MAGNOLI

O GLOBO - 31/07


Desde que subiu a rampa do Planalto, Lula conferiu à política externa as funções de promover o seu prestígio pessoal



É possível errar o chute e balançar as redes do gol. Enquadra-se nessa categoria dos erros certeiros o rótulo de “anão diplomático” pregado ao Brasil por Yigal Palmor, porta-voz da chancelaria de Israel. Um país não é um anão diplomático por dizer sempre coisas equivocadas, mas por carecer de credibilidade mesmo quando faz declarações corretas. O Brasil converteu-se num anão diplomático desde que, 11 anos atrás, Lula inaugurou a sua “nova política externa”. Palmor pode ser uma figura insignificante, o “sub do sub do sub do sub do sub do sub”, nas palavras gentis do assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, mas exprimiu em termos oficiais, pela primeira vez, o que é voz corrente nos meios diplomáticos internacionais.

A política externa constitui, de modo geral, uma esfera singular na qual os governos subordinam o jogo partidário doméstico a um certo consenso político que se costuma denominar interesse nacional. A marca da “nova política externa” lulista é a violação dessa regra. Desde que subiu a rampa do Planalto, Lula conferiu à política externa as funções de promover o seu prestígio pessoal e de atender às idiossincrasias ideológicas do PT, contrabalançando no plano simbólico a ortodoxia do governo no terreno da economia. Dilma Rousseff persistiu na linha de seu patrono, subtraindo apenas a primeira das funções (afinal, dois sóis não devem brilhar no mesmo firmamento). O produto final do desprezo pelo interesse nacional está sintetizado na expressão pouco diplomática de um “sub do sub do sub do sub do sub do sub” que não foi desmentida por nenhum de seus (supostos) seis chefes.

Nossa Constituição, no artigo 4, enumera os princípios que deveriam reger a política externa brasileira, esclarecendo o que são os interesses nacionais permanentes. A “prevalência dos direitos humanos” emerge, ali, como segundo princípio, antes da “não intervenção” nos assuntos internos de outras nações. Contudo, sob o lulismo, o Itamaraty acostumou-se a silenciar sobre as violações de direitos humanos cometidas por regimes autoritários “amigos”, invocando como pretexto o princípio da “não intervenção”. Cuba não será molestada por uma declaração brasileira se encarcerar ou fuzilar dissidentes e a Venezuela nada ouvirá se utilizar um Judiciário submisso para cassar mandatos de opositores e aprisioná-los sem provas ou cercear as liberdades de expressão e imprensa. A exceção é Israel: no caso particular do Estado judeu, a “não intervenção” cede precedência à “prevalência dos direitos humanos”, numa oscilação de pesos e medidas típica de um anão diplomático.

A inconsistência tem o condão de destruir a credibilidade diplomática dos países que negociam princípios. O Brasil calou-se diante da anexação da Crimeia pela Rússia, violando os princípios constitucionais da “não intervenção” e da “igualdade entre os estados” com a finalidade mesquinha de não desagradar a Vladimir Putin pouco antes da cúpula do Brics em Fortaleza e Brasília. Pelo mesmo motivo, logo após o encerramento da reunião, fechou-se em constrangedor mutismo diante da criminosa derrubada da aeronave da Malaysian Airlines no leste da Ucrânia. O anão diplomático não distingue o certo do errado: age caso a caso, segundo tortuosas conveniências políticas e deploráveis tiques ideológicos. Figuras muito mais qualificadas que um representante da ultra-direita do gabinete israelense têm motivos para repetir o epíteto humilhante escolhido por Palmor.

Na nota oficial divulgada pelo Itamaraty, o governo brasileiro condena “o uso desproporcional da força por Israel na Faixa de Gaza”, uma declaração precisa, embora incompleta. As leis de guerra obrigam os estados a usar todos os meios para minimizar as vítimas civis dos efeitos de operações militares. Israel comete crimes de guerra ao bombardear cidades e campos de refugiados na Faixa de Gaza, uma área com estatuto de território ocupado, o que agrava os crimes. O anão diplomático não disse isso, mas por um motivo oportunista: a acusação precisaria se estender também ao Hamas, que lança foguetes desgovernados sobre Israel e, sistematicamente, utiliza os civis palestinos como escudos humanos para seus militantes.

Palmor talvez seja seis vezes “sub”, mas falou em nome do governo de Israel. Marco Aurélio Garcia é “sub” uma vez só: tem status de ministro e opera como chanceler alternativo, algo como um comissário do lulopetismo para política externa. Não há, portanto, como duvidar da natureza oficial da declaração na qual caracterizou como “genocídio” a operação militar israelense na Faixa de Gaza. A palavra, escolhida com um propósito, é muito mais grave que a frase ofensiva de Palmor.

Genocídio é o extermínio deliberado de um povo. O massacre, deliberado ou não, de civis na Faixa de Gaza é um crime de guerra, mas não pode, nem de longe, ser classificado como genocídio. A Alemanha nazista praticou genocídio ao enviar milhões de judeus para as câmaras de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. A falsa acusação de genocídio é assacada regularmente contra Israel, desde a fundação do Estado judeu, por movimentos antissemitas de extrema-direita e extrema-esquerda. Por meio dela, fabrica-se um abominável paralelo entre Israel e a Alemanha nazista. A finalidade da manobra discursiva, como sabe perfeitamente Marco Aurélio Garcia, é negar a legitimidade da existência do Estado judeu. O anão diplomático rebaixa-se a um ponto extremo quando se refestela no pântano da delinquência ideológica antissemita.

É uma vergonha sem fim. Dilma Rousseff disse que, na sua “opinião”, não ocorre um “genocídio”, mas um “massacre”, na Faixa de Gaza, deixando implícita a avaliação de que a seleção da palavra é uma questão de gosto. O anão diplomático simula desconhecer tanto o significado das palavras quanto o peso da história.

Quem deve julgar é o juiz de direito - ANTONIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA

O ESTADÃO - 31/07


O Poder Judiciário brasileiro passa atualmente por um verdadeiro processo de catarse. Os seus dirigentes estão imbuídos do louvável anseio de mudança com o objetivo de remover e de superar os seus entraves e as suas dificuldades, visando ao adequado e correto cumprimento de sua elevada missão de dizer o Direito para buscar e manter a harmonia e a paz em sociedade.

O seu grande desafio consiste na preparação e na adequação de suas estruturas para atender às exigências de uma sociedade em constantes e céleres mutações e que apresenta um elevado índice de litigiosidade.

O fato de o Poder Judiciário se estar pondo em discussão com sinceridade e transparência já constitui um auspicioso avanço para o seu aprimoramento. Ademais, sendo ele um poder tradicionalmente refratário a modificações e a críticas, estar agora saindo de seu hermetismo para sujeitar-se a uma aprofundada análise, que produzirá alterações acentuadas em suas estruturas, revela-se também um aspecto altamente promissor.

Faz-se mister a remoção das causas já devidamente diagnosticadas de seus principais problemas. Para tanto, é fundamental que tais causas sejam expressamente reconhecidas e que não sejam evocadas falsas razões para encobrir os verdadeiros motivos de sua tão decantada morosidade.

Uma questão relativamente recente deve ser posta no alvo das preocupações daqueles que têm uma crença inabalável na Justiça brasileira e desejam o seu aprimoramento: trata-se da ideia, disseminada e difundida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e abraçada por alguns próceres da magistratura, de constituir a eficiência a meta prioritária do Judiciário, devendo ser medida pelo número de decisões proferidas, ou seja, a produção será a principal referência da correta administração da Justiça.

É claro que o critério quantitativo como indicador do bom funcionamento do Judiciário se põe em detrimento da qualidade das decisões. Não são poucos os casos em que a rapidez é incompatível com o esmero e o cuidado que a decisão requer.

Com efeito, basta que se aponte um reflexo dessa exigência meramente funcional: alguns magistrados, obviamente não todos - aliás, uma minoria -, estão utilizando assessores, que originariamente apenas elaboravam os relatórios dos processos, pesquisavam a doutrina e a jurisprudência e desempenhavam outras atividades de auxílio.

Para atingir as exigidas metas de produção, os magistrados estão "delegando" a sua constitucional e elevada atribuição de decidir a assessores. Até pouco tempo, essa prática seria inimaginável. Ela representa uma assustadora inversão de papéis: assessores julgam e juízes assessoram, ou, melhor, assinam.

Com a indesejável expansão ou mesmo a só continuidade da aberrante "delegação", será mais autêntico conceder aos auxiliares o direito de apor as suas assinaturas nos atos praticados. Ademais, quaisquer outros funcionários públicos não investidos de jurisdição dos poderes constitucionais poderão ser compelidos a colaborar no desempenho das funções privativas do Judiciário, elaborando sentenças e acórdãos.

O Estado juiz poderá passar a ser representado por qualquer agente estatal, tornando desnecessária a carreira da magistratura. Assim, os assessores dos magistrados ou quaisquer funcionários assumirão material e formalmente a missão de julgar.

É claro que os dois últimos parágrafos representam uma situação por si caricata, fantasiosa. No entanto, ela é fruto de uma realidade também caricata, que seria ficcional em face da monstruosa ilegalidade que encerra, caso não se fizesse presente.

Não faz muito tempo, li, estupefato, ou, melhor, aterrorizado, um representante da magistratura brasileira aconselhar os seus pares a lerem os trabalhos - leia-se decisões - dos assessores antes de assiná-los!

Incrédulo, reli. Era mesmo aquilo: confessava-se que a atribuição constitucional de julgar estava sendo usurpada e, o que mais choca, por determinação do usurpado.

Lembre-se, o usurpado é detentor de poderes e atribuições exclusivos e de origem constitucional. Com a abdicação dessa exclusividade, a ordem constitucional está violada, tornando ilegítima a atuação da jurisdição, em razão da ilegitimidade dos seus pseudoagentes.

Sabe-se que a operação de julgar é complexa e os magistrados, em face da avalanche de feitos, já não podem prescindir do concurso de capacitados assessores para elaborar relatórios, pesquisar doutrina e jurisprudência, separar a legislação e inteirar-se da prova e resumi-la. No entanto, o ato de constituir a convicção sobre o litígio para decidi-lo é um ato solitário e exclusivo do juiz, que, pela sua transcendência, atinge as culminâncias do sagrado.

Pois bem, o magistrado não pode abdicar dessa sublime missão, que o torna imprescindível para a sociedade e por ela é reverenciado e acatado.

Em razão da utilização de assessores, algumas decisões de um mesmo magistrado sobre matérias idênticas foram proferidas em sentido contrário. Não se pense ter havido uma alteração de entendimento do juiz, o que é normal e compreensivo. A razão dessa dualidade reside, no entanto, no fato de dois assessores terem proferido as decisões. Cada um esposava um entendimento, e o subscritor dos acórdãos nem sequer observou o objeto dos processos.

Em certa ocasião, um magistrado disse-me que, graças ao memorial que lhe fora entregue e à sustentação oral produzida, deixara de cometer um erro, porque teria decidido contra a prova e contra a sua própria convicção. A sua assessoria não se atentara para o engano que estava sendo cometido.

Que o Poder Judiciário continue neste necessário e meritório trabalho de autorreformulação, sem perder de vista que liberdade, família, direitos humanos e patrimônio não são produtos de consumo, mas, sim, bens de vida.

Livres para fiscalizar - LUCIENI PEREIRA

O GLOBO - 31/07


O primeiro escalão dos tribunais de contas precisa ser ocupado por técnicos


Quem fiscaliza o governo não deve ser indicado por critérios político-partidários, mas técnicos. Este princípio está contido em todos os grandes regimes democráticos, pois se baseia na premissa de que o bem comum é a meta da verdadeira liberdade política.

Dois são os pressupostos para o alcance desse objetivo, os quais não vêm sendo observados em toda a Federação. O primeiro: garantir que a indicação de ministros e conselheiros dos 34 tribunais de contas do Brasil cumpra as exigências constitucionais referentes à idoneidade moral, à reputação ilibada e ao notório saber jurídico, contábil, econômico e financeiro ou de administração pública, por parte dos candidatos.

O segundo: que o órgão de auditoria responsável pelas fiscalizações seja organizado segundo princípios e normas asseguradores da efetiva independência funcional dos auditores de controle externo. A atribuição destes é fiscalizar órgãos e entidades da administração pública e demais agentes responsáveis pela aplicação de recursos públicos.

Não podem mais ser aceitas nos tribunais de contas pessoas suspeitas de práticas de crime, ou que inspirem desconfiança da sociedade por terem sido indicadas por acordos político-partidários ou que não tenham independência funcional para fiscalizar os gestores. A história recente mostra casos de conselheiros que respondem a processos que inviabilizam o exercício de suas funções em tribunais de contas.

Desvios na gestão dos próprios tribunais de contas comprometem a credibilidade desses órgãos e geram indignação entre gestores honestos que têm as contas julgadas por quem não dá o exemplo. O resultado do descompasso se volta contra os próprios tribunais e a Lei da Ficha Limpa. Em vista disso, não são poucas as propostas para alterar a Lei da Ficha Limpa e retirar a hipótese de inelegibilidade por rejeição de contas, que, este ano, corresponde a 60% dos casos.

O primeiro escalão dos tribunais de contas precisa ser preponderantemente ocupado por quadros técnicos, como ocorre com a Magistratura Nacional. Neste contexto, a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) defende proposta de emenda à Constituição Federal com vistas a estabelecer um padrão mínimo de organização e funcionamento dos 34 tribunais de contas.

Pela proposta, a indicação da terceira vaga de escolha do Poder Executivo se restringiria a candidatos da carreira da advocacia pública (Advocacia-Geral da União e Procuradoria-Geral do Estado); das vagas reservadas à indicação das Casas Legislativas, pelo menos duas seriam reservadas a auditores de controle externo concursados, com experiência mínima de dez anos no cargo. A proposta prevê a edição da lei orgânica nacional para os tribunais de contas e do código de processo de contas, além do estabelecimento do portal nacional de transparência e visibilidade dos tribunais de contas.

Dada a inequívoca importância das instâncias fiscalizadoras municipais, estaduais e federais, o que está em jogo é a nossa democracia.

A inútil irritação oficial com o mercado - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 31/07

Em vez de criticar banco, o FMI ou analistas, o governo deveria encarar a vida real e agir. Por exemplo, para o Brasil enfrentar o impacto da alta dos juros nos EUA

O governo enfrenta, nos últimos dias, uma crise no relacionamento com os fatos econômicos. A primeira grande rusga ocorreu em torno de uma análise feita no Santander para clientes preferenciais. O banco entrou na mira da artilharia oficial e da campanha à reeleição da presidente, por citar algo já conhecido: a bolsa tem subido quando saem pesquisas negativas para o projeto da reeleição, e vice-versa.
Essas oscilações relacionadas a sondagens eleitorais são interpretadas como reação de investidores em ações de empresas estatais que pagam alto preço devido ao intervencionismo característico da administração Dilma. A Petrobras é o exemplo mais evidente, forçada a acumular perdas majestosas por subsidiar o preço interno de combustíveis, e com isso adiar pressões sobre a inflação. O investidor em ações faz uma dedução lógica: se Dilma não se reeleger, a empresa deixará de perder dinheiro, e ele, acionista, receberá mais dividendos.

Logo em seguida, na terça, veio o desgosto, expresso pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, com o Fundo Monetário Internacional. Agora, devido a um relatório em que se alinham pontos críticos da economia brasileira. Também aqui, nada de novo. São questões que há tempos estão no mapeamento dos problemas brasileiros feito por analistas independentes.

Os técnicos do Fundo não veem como o Brasil voltará a crescer a taxas razoáveis - a última estimativa do FMI para este ano é de 1,3%, e 0,9% na projeção de analistas do setor financeiro do país -se não executar reformas estruturais. A própria gerente-geral do Fundo, a francesa Christine Lagarde, listou tarefas a serem executadas em Brasília: combater a inflação, os desequilíbrios fiscais, os déficits externos. Tudo também por demais conhecido.

Em vez de se crispar e responder no reflexo, de forma agressiva, a qualquer crítica sobre a economia, o governo deveria entender as análises, reconhecer que há mesmo problemas e tratar de manejar com esta realidade.

Não adianta praguejar contra o mercado. Subsidiar preços, comprimir inflação com tarifas atrasadas, dar subsídios fiscais pesados ao setor elétrico, na verdade um "esqueleto" em construção nas contas públicas, etc. apenas adiam problemas. E os agravam. É óbvio.

O tempo não para, e o mundo, por exemplo, precisa se preparar para o momento em que os Estados Unidos acabarão de vez com a política monetária expansionista e voltarão a elevar os juros. No segundo trimestre, soube-se ontem, os EUA cresceram à taxa anualizada de 4% - algo como quatro vezes mais rápido que o Brasil.

Em vez de criticar analista de banco, o FMI e o mercado, o Planalto precisa encarar a vida real. E agir. A economia brasileira sofrerá um impacto maior ou menor dessa guinada americana a depender de atitudes que o governo assumir agora diante de evidentes vulnerabilidades. 


De costas para a realidade - EDITORIAL O ESTADÃO

O ESTADO DE S.PAULO - 31/07


O Brasil estaria bem melhor, com maior crescimento, inflação menor, exportações bombando e contas públicas mais sólidas, se o ministro da Fazenda, Guido Mantega, reconhecesse os problemas e gastasse menos tempo negando fatos bem conhecidos por qualquer pessoa razoavelmente informada. Ele se envolveu em mais uma batalha desse tipo, nesta semana, em mais um esforço inútil para contestar avaliações apresentadas em relatórios do Fundo Monetário Internacional (FMI). No primeiro documento, sobre efeitos colaterais de mudanças na política dos países mais importantes, o Brasil é incluído na lista dos sete emergentes mais vulneráveis. Os outros são Rússia, Turquia, Indonésia, Índia, Argentina e África do Sul. No segundo, a situação das contas externas brasileiras é apresentada como "moderadamente frágil", com risco de rápida piora, em caso de forte desvalorização dos produtos básicos.

Segundo o ministro, o FMI repetiu, no primeiro estudo, um erro cometido há meses por outras instituições, quando incluíram o Brasil na lista dos países mais sujeitos a problemas, se as condições financeiras ficassem mais apertadas. O Brasil, segundo ele, enfrentou muito bem as dificuldades já ocasionadas pela mudança na política monetária americana. O câmbio, disse o ministro, está estabilizado e o País continua sendo um dos principais destinos do investimento estrangeiro direto.

Mas ele deixou de mencionar dois detalhe importantes. O real foi uma das moedas mais afetadas pelas mudanças nos mercados cambiais, no ano passado, e a instabilidade só foi contida graças a repetidas intervenções do Banco Central (BC). Essas intervenções foram mantidas neste ano, para impedir ou limitar o efeito inflacionário da depreciação do câmbio. Além disso, o investimento estrangeiro direto continua insuficiente - como já foi no ano anterior - para cobrir o déficit na conta corrente do balanço de pagamentos. Caiu, portanto, a qualidade do financiamento necessário ao fechamento das contas externas.

O esquecimento, ou negligência proposital, desses dois detalhes deixou na sombra um amplo conjunto de problemas. Nem o governo prevê para este ano um crescimento econômico superior a 1,8%, número apontado há poucas semanas pelo Ministério do Planejamento. No mercado, as projeções são inferiores a 1%. O FMI, em sua última revisão do panorama econômico mundial, baixou de 1,8% para 1,3% a estimativa de expansão do PIB brasileiro. Reduziu as projeções para outros países, também, mas os números previstos para o Brasil estão entre os piores, no cenário global, e desde o ano passado têm sido revistos para baixo.

O ministro da Fazenda está certo quanto a um ponto: o FMI tem errado em relação à economia brasileira. Mas tem errado por excesso de otimismo e por levar a sério, mais do que deveria, a política de Brasília.

O Brasil, como outros emergentes, perdeu dinamismo nos últimos anos e isso se deve, segundo a análise do FMI, mais a fatores estruturais do que à conjuntura internacional. São problemas internos: infraestrutura deficiente, contas públicas em mau estado, inflação elevada e contas externas em deterioração.

O câmbio valorizado é parte do problema, admitem os analistas do FMI. Mas eles poderiam acrescentar: esse problema persistirá enquanto a inflação for muito alta e o BC, para atenuar a alta de preços, intervier no mercado para conter a depreciação do real.

Todos esses problemas têm sido extensamente discutidos por economistas brasileiros e estrangeiros. Mas o governo se recusa a enfrentá-los seriamente. As autoridades têm preferido maquiar as contas públicas e administrar os índices de inflação, contendo os preços de combustíveis, da eletricidade e do transporte público.

A situação "moderadamente frágil" das contas externas é um complemento previsível desse quadro. O País dispõe de reservas próximas de US$ 380 bilhões e isso proporciona alguma segurança. Mas a segurança efetiva e duradoura só poderia provir de um aumento da produtividade geral do País e da competitividade. Disso o governo tem cuidado muito mal.


Sinal aceso pelo FMI - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE

CORREIO BRAZILIENSE - 31/07
Em outubro de 2013 - portanto, menos de um ano atrás -, relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a estabilidade financeira global apontava o Brasil como exemplo para outros países emergentes. Segundo o documento, a casa estava "em ordem", pronta para os desafios de uma economia mundial em transição. Até houve elogios à disposição do Banco Central brasileiro de elevar as taxas de juros. É fato que também não faltaram ressalvas. Uma delas, a necessidade de reforçar os mecanismos de resistência. 
Nove meses depois, o FMI coloca o Brasil no saco de países emergentes mais vulneráveis a uma piora da economia global, com a África do Sul, a Argentina, a Índia, a Indonésia, a Rússia e a Turquia. O que teria mudado tanto nesse curto espaço de tempo? A instituição critica o baixo crescimento. Não há o que contestar. Afinal, a expansão do PIB este ano deve ficar abaixo de 1%. Outro problema persistente é a inflação, que deve chegar ao fim de 2014 em torno do teto da meta, fixado em 6,5%, sem contar a pressão contida dos preços administrados pelo governo, que em hora próxima terão de ser reajustados. 

PIB rateando e preços em ascensão bastam para definir a deterioração do quadro macroeconômico. Mas o ministro da Fazenda, Guido Mantega, prefere desmerecer o relatório do FMI - segundo ele, produzido por escalações inferiores e recheado de velhos equívocos. Na reação, cita dados positivos, como a manutenção, pelo quarto ano consecutivo, dos investimentos estrangeiros diretos em patamar superior a US$ 60 bilhões em 12 meses. Acrescenta que o real valorizou-se 9,4% no primeiro semestre deste ano e que a Bolsa de Valores de São Paulo subiu 21,25% no mesmo período. Poderia, ainda, ter calçado as críticas ao fundo com números da oferta de emprego e da melhoria da renda no país, embora o ritmo desses avanços tenha perdido ímpeto. 

Por fim, o ministro, numa apelação suprema, poderia questionar a coincidência de a instituição ter colocado no mesmo saco Brasil, África do Sul, Índia e Rússia, que, somados à China, formam o Brics, grupo que acaba de aprovar a criação de um fundo para reduzir a dependência dos emergentes em relação ao FMI. Não chegou a tanto. Mas melhor seria se admitisse outros graves poréns da economia brasileira, como as baixas taxas de investimento e de poupança interna, a infraestrutura incipiente, os gastos públicos exacerbados, as reformas (sobretudo, a tributária) sempre adiadas e por aí afora. Melhor, ainda, se respondesse com equilíbrio fiscal capaz de tornar inquebrantável a confiança no país. 

Sem o devido eco, o sinal aceso pelo FMI corre o risco de ser, ao contrário, um fator a mais de desestabilização, usado apenas contra o país, instrumento de manipulação para especuladores internacionais. Ainda mais em cenário de acirrada disputa política, com a presidente da República empenhada em reeleger-se. Portanto, é bom pôr de lado o discurso eleitoreiro e cuidar de arrumar a casa. Afinal, se tudo estivesse realmente bem, com crescimento econômico e social sustentáveis, seria dispensável qualquer tentativa de desacreditar o fundo, e Dilma Rousseff dificilmente teria a reeleição em risco.

Contas atrasadas - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 31/07


Estiagem e intervencionismo do governo federal impõem rombo bilionário ao sistema elétrico, um ônus que pode sobrar para bancos públicos


A presidente da República, Dilma Rousseff (PT), e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), ambos candidatos à reeleição, têm uma aflição em comum: quanta água cairá do céu para regar suas campanhas eleitorais.

Alckmin está às voltas com a maior crise hídrica da região metropolitana da capital paulista e depende das chuvas, mais que incertas, para se livrar de um impopular racionamento neste ano. Por ora, multiplica as medidas paliativas, que mal são capazes de mitigar os efeitos da incúria em duas décadas de governos tucanos.

Os reservatórios secos também atormentam Dilma, mas por outros motivos. A pluviosidade reduzida de 2014, sobretudo no Sudeste e no Centro-Oeste (que geram 70% da eletricidade nacional), combinou-se com a desastrada intervenção para baixar tarifas na marra e originou uma crise de financiamento, também sem precedentes, entre distribuidoras de energia.

Reservatórios vazios forçam o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a rebaixar a produção nas hidrelétricas afetadas, de modo a impedir que os lagos se esvaziem de vez. Com isso, a energia faltante tem de ser despachada por termelétricas, muito mais caras.

As distribuidoras, por sua vez, incapazes de cumprir compromissos de longo prazo, veem-se obrigadas a adquirir energia no mercado livre, onde os preços praticados podem ser sete vezes maiores.

Com as tarifas que recebem represadas, cresce o seu rombo, que o governo busca tapar com recursos do Tesouro e empréstimos.

No início do ano, o Planalto arquitetou um inédito financiamento, de R$ 11,2 bilhões, garantido pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, um ente privado. Deveria bastar até o final deste 2014, mas mal deu para segurar as contas por um quadrimestre.

Agora, o governo articula empréstimo adicional de R$ 6,5 bilhões para manter as distribuidoras à tona. O ônus deveria ser repartido entre bancos públicos e privados, mas estes se mostram insatisfeitos com as garantias oferecidas e cobram taxas de juros maiores.

É provável, como já se previa, que o débito inteiro fique com o BNDES, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil.

O custo do intervencionismo da presidente e candidata, também ex-ministra de Minas e Energia, já monta a R$ 17,7 bilhões. Pode chegar a R$ 20 bilhões.

O Planalto, contudo, decidiu que a conta só começará a ser cobrada dos consumidores depois das eleições, em 2015 e 2016, com dois aumentos de tarifa de no mínimo 8% cada um, segundo cálculos preliminares da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

A prioridade, como se vê, não é a sustentabilidade do sistema.

Reação autoritária - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 31/07


Classificar o informe do Santander de “interferência eleitoral” é completamente descabido



Quando um cliente confia seu dinheiro a um banco, o mínimo que espera da instituição e de seus funcionários é um aconselhamento sincero sobre as perspectivas da economia e as melhores formas de fazer render os recursos depositados. Aos analistas do banco cabe interpretar os sinais vindos de diversas fontes e traçar cenários com base em possibilidades futuras. Foi o que o banco Santander fez na semana passada, quando enviou a clientes do segmento Select (com renda mensal acima de R$ 10 mil) um informe no qual dizia que “se a presidente [Dilma Rousseff] se estabilizar ou voltar a subir nas pesquisas [de intenção de voto para a Presidência], um cenário de reversão pode surgir. O câmbio voltaria a se desvalorizar, juros longos retomariam alta e o índice da Bovespa cairia, revertendo parte das altas recentes”. A reação a essa análise mostrou o quanto o país – ou pelo menos algumas de suas lideranças – ainda pode estar longe de um genuíno apreço pela liberdade de expressão.

O presidente do PT, Rui Falcão, deixou fluir a verve totalitária que lhe é característica e falou em “terrorismo eleitoral”. “Instituições bancárias ou financeiras não podem fazer manifestações que interfiram na decisão do voto”, afirmou. “Terrorismo econômico” foi a expressão usada pelo site Muda Mais, vinculado à campanha de Dilma Rousseff. A presidente, em sabatina a alguns veículos de comunicação, classificou o episódio como “inadmissível”. “Um país não deve aceitar uma interferência de qualquer instituição financeira de qualquer nível”, disse. O ex-presidente Lula, bem menos sutil, pediu a cabeça dos responsáveis. “Botín [Emílio Botín, presidente mundial do Santander], é o seguinte, querido: tenho consciência de que não foi você quem falou. Mas essa moça tua que falou não entende p... nenhuma de Brasil, e nada de governo Dilma. Manter uma mulher dessa em cargo de chefia, sinceramente… Pode mandar embora e dar o bônus dela pra mim que eu sei o que falo”, afirmou na segunda-feira, em evento da CUT. Na terça-feira, Botín confirmou uma demissão. Antes, o banco já tinha publicado uma nota em que, entre outras coisas, reforçava “sua convicção de que a economia brasileira seguirá sua bem-sucedida trajetória de desenvolvimento”.

Classificar o informe do Santander de “interferência eleitoral” é completamente descabido. Trata-se de uma análise habitual, enviada ao mesmo grupo restrito que recebia os demais informes, e que faz parte das obrigações do banco para com seus clientes. Aliás, o texto meramente dá conta do comportamento dos mercados – basta verificar como a bolsa sobe logo após a divulgação de cada pesquisa em que a vantagem de Dilma em relação aos adversários cai. A maneira como foi escrito o relatório pode até ser questionável (embora os clientes provavelmente estejam mais preocupados com a precisão das previsões que com seu linguajar), mas é fato que a perspectiva da manutenção de uma política econômica equivocada, que está levando o Brasil a um cenário de baixo crescimento e tolerância com a inflação, causa e deveria causar apreensão não só entre os mais ricos – afinal, são os pobres os que mais sofrem com estagnação econômica e preços em alta. Análises como a do Santander fazem parte do jogo democrático, algo difícil de entender para quem não admite opiniões divergentes.

E não deixa de ser irônico o fato de o governo que acusa bancos privados de “interferência eleitoral” usar os bancos estatais para fazer política, seja usando seus lucros para ajudar a fechar as contas (como apontou relatório recente do Tribunal de Contas da União), seja usando a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil para forçar reduções de juros. Além disso, o partido que acusa o Santander de “terrorismo eleitoral” não vê problemas em frases como “Se o Aécio ganhar a eleição ele vai acabar com a conquista que se consolidou com o presidente Lula, de valorização do salário mínimo”, dita pelo presidente da CUT no evento de segunda-feira.

Na Argentina, onde o governo manipula os números da inflação, economistas já foram processados por divulgar estatísticas independentes, e a Justiça chegou a pedir dados pessoais de jornalistas que escreveram matérias sobre a alta de preços. Na sabatina de segunda-feira, Dilma prometeu “uma medida bastante séria” em relação ao Santander, sem entrar em detalhes e ressaltando que antes conversaria com a diretoria do banco. Se suas ações futuras forem guiadas pelo voluntarismo que ela deixou transparecer na reação ao episódio, será preciso lembrá-la de que o Brasil é uma democracia cuja Constituição felizmente impede qualquer medida de caráter ditatorial.

COLUNA DE CLAUDIO HUMBERTO

“Foi um resultado fiscal menos dinâmico”
Secretário do Tesouro, Arno Augustin, minimizando o deficit de 1,94 bilhão em junho, o pior da história



ALCKMIN APROVEITA BRIGA DE SKAF PARA ATRAIR PMDB

Candidato à reeleição em SP, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) tem aproveitado a queda de braço entre o adversário Paulo Skaf e o vice-presidente da República, Michel Temer, para angariar apoio nas bases do PMDB. Aconselhado pelo marqueteiro Duda Mendonça, que não vê a hora de dar troco no arqui-inimigo João Santana, Skaf ignora os apelos de Temer e se recusa a oferecer palanque para Dilma.

CABO ELEITORAL

O deputado Gabriel Chalita (PMDB) – desafeto de Skaf em SP – tem trabalhado, nos bastidores, junto a prefeitos a favor de Geraldo Alckmin.

PURA PROVOCAÇÃO

Padrinho da candidatura, Temer ficou irritado com peça na qual Skaf é questionado sobre apoiar Dilma e responde: “Sabe de nada, inocente”.

JOGA NO LIXO

Para a cúpula do PMDB, a estratégia individualista de Skaf diminui chances de 2º turno, já que Alexandre Padilha não cresce nas pesquisas.

TEM SEUS MOTIVOS

Não é à toa que Skaf tenta se descolar da presidente Dilma: ela carrega 47% de rejeição em SP, onde hoje perderia para Aécio num 2º turno.

MÃO DE FERRO

Os presidenciáveis Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) têm mais em comum do que se imagina. Assim como o ex-presidente Lula não se cansa de reclamar que a sucessora não ouve ninguém, senadores e deputados do PSDB descem a lenha na postura do tucano Aécio Neves de decidir tudo sozinho. No PSB, o cenário não é diferente: Eduardo Campos não escuta nem a turma de Pernambuco.

SÓ ATRAPALHA

O PSB e PSDB reclamam que a centralização das decisões, além de não envolver aliados na campanha, fragiliza chances de chegar ao Planalto.

DEU NA MESMA

Alvo de queixas, Dilma abriu uma brecha e marcou reuniões com presidentes de siglas aliadas, o que não mudou muito nas decisões.

BRIGA NA JUSTIÇA

O PSDB entrou com nova ação no MP-DF contra Gilberto Carvalho por utilizar cargo de ministro para fazer propaganda negativa de Aécio Neves.

NA PINDAÍBA

Candidato ao governo do Rio, o senador Lindbergh Farias (PT) sofre do mesmo mal do correligionário Alexandre Padilha em SP: muito verbo e pouca verba. Os empresários negam doações eleitorais com medo das denúncias que batem na porta do PT e da falta de perspectiva de vitória.

VISTA GROSSA

Flagrado em áudios revelando com toda naturalidade que recebe propina, deputado Rodrigo Bethlem (RJ) avisou ao PMDB que desistirá da disputa à reeleição, mas deverá continuar filiado ao partido, que faz vista grossa.

VICE AUSENTE

Diferentemente de Michel Temer e Marina Silva, o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) não acompanhou ontem o presidenciável Aécio Neves na sabatina com empresários na Confederação Nacional da Indústria (CNI).

PARA COMPENSAR

O deputado Luiz Pitiman – candidato tucano ao governo do Distrito Federal – fez questão de comparecer ontem na sabatina de Aécio Neves (MG), que está empatado com a presidente Dilma nas pesquisas no DF.

GESTOS

Após a sabatina na CNI, Eduardo Campos (PSB) ofereceu a cadeira principal para coletiva de imprensa à vice Marina Silva: “Minha vez foi com empresários, agora é a sua”, disse brincando, e assumiu o posto.

DESTEMPERADO

O senador Roberto Requião (PMDB-PR), chamado por adversários de ‘Maria Louca’, abandonou entrevista para rádio CBN de Cascavel ao ser questionado sobre retirada de aditivo que previa duplicação da BR-277.

QUER ENGANAR QUEM?

Presidente do PSDB-ES, César Colnago critica Eduardo Campos, que promete recuperar o Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias, “quando a bancada dele votou contra o fundo no Senado”.

COISA DE DOIDO

Candidato ao Senado, João Paulo (PT-PE) virou alvo de chacota após entrevista sobre maioridade penal na qual falou de valorização da vida, meditação transcendental e terminou contando sobre amigo que tentou suicídio e cujo dia mais feliz da vida foi quando conseguiu fazer cocô.

PENSANDO BEM...

... com o futebolzinho jogado nos estádios após a Copa, o Templo de Salomão terá a maior média de público do Brasil.


PODER SEM PUDOR

O BOM EXÍLIO

Paraibano de Itabaiana, Abelardo Jurema teve uma vida política tão rica quanto estonteante. Foi eleito deputado federal em 1958 e 1962 e depois nomeado ministro da Justiça do governo João Goulart. Com o golpe militar de 64, ele acabaria no exílio, no Peru, onde sobrevivia vendendo charutos. Certa vez, ele recebeu a visita do filho, João Luiz, que era menor e vivia no Brasil, e os dois passaram uma boa temporada juntos.

- Eu queria que esse exílio nunca mais acabasse - disse o garoto, para surpresa do ex-ministro, que mal aguentava a dor da distância.

Diante do ar de perplexidade do pai, João logo explicou:

- No Brasil, nunca passei um dia inteiro com o senhor.

quarta-feira, julho 30, 2014

¡Que venga el toro! - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 30/07


A análise do banco nada tem de controverso; é o óbvio, amplamente noticiado, que virou objeto de censura


Antes de tudo, um alerta: para quem não sabe, fui economista-chefe do Santander entre 2008 e 2011, demitido após discussão pública com o então presidente da Petrobras. Digo isso porque quero hoje tratar do imbróglio que envolveu o banco na semana passada, quando foi publicada análise relacionando o desempenho da presidente nas pesquisas eleitorais ao comportamento da Bolsa, do dólar e de outros ativos.

A análise nada trouxe de controverso. Aqui mesmo na Folha, no dia 19, lia-se na página B3: "Bolsa chega ao maior nível em 16 meses", notando que "as ações de empresas estatais dispararam na BM&FBovespa e impulsionaram o principal índice da Bolsa brasileira nesta sexta-feira (18), após pesquisa Datafolha ter apresentado empate técnico entre a presidente Dilma Rousseff (PT) e o senador Aécio Neves (PSDB)". Acrescentou ainda que, "desde que começaram a ser divulgadas pesquisas apontando perda de espaço da presidente (...), o mercado de ações nacional, que caía e acentuava queda (...), mudou de tendência".

O governo e o partido podem não concordar com a avaliação do mercado, mas, conforme descrito pelo jornal, trata-se de um fato: para bem ou para mal, a percepção é que uma mudança de orientação de política econômica terá efeitos positivos sobre as empresas brasileiras, em particular as sujeitas a controle acionário governamental.

E é bom notar que o tal mercado pode ter as preferências ideológicas que quiser, mas, na hora de comprar ou vender uma ação, o que menos interessa é ideologia; é sempre a perspectiva de lucro que move esses agentes. Posto de outra forma, ninguém rasga dinheiro em nome de suas convicções políticas.

O texto do banco, enviado a correntistas com renda mensal superior a R$ 10 mil, supostamente mais propensos a operar no mercado financeiro, nada mais fez do que compartilhar esses fatos, e por um motivo muito claro. Bancos têm um dever fiduciário com seus clientes: não podem omitir ou distorcer informações relevantes para sua tomada de decisão.

Em particular, a opinião das áreas de pesquisa deve refletir exatamente esse tipo de preocupação. Analistas não estão certos o tempo todo, mas é claro que suas conclusões não devem ser guiadas pelos interesses da instituição financeira. Não por acaso as regras buscam (nem sempre com sucesso, diga-se) isolar a pesquisa econômica das posições próprias do banco e mesmo de áreas que gerenciam as aplicações de clientes (fundos de investimento), precaução devidamente apelidada de "muralha da China".

Nesse sentido, a decisão de demitir os analistas que expuseram, mais que uma opinião, um fato representa uma violação desse procedimento. A alegação de que a análise conteria "viés político ou partidário" não se sustenta diante da própria diretriz interna que "estabelece que toda e qualquer análise econômica enviada aos clientes restrinja-se à discussão de variáveis que possam afetar a vida financeira dos correntistas". Não há, como se viu, a menor dúvida de que as perspectivas acerca da eleição presidencial são mais que relevantes para afetar a vida financeira dos clientes.

A consequência desse comportamento é óbvia (e aqui falo em termos gerais, não do banco em si). Se a autonomia da pesquisa é ameaçada, a credibilidade da análise fica comprometida, a despeito das qualidades do analista. Quem, de agora em diante, pode confiar em relatórios se não sabemos a que tipo de filtros estes se encontram sujeitos?

O maior perdedor é o debate econômico, ainda mais numa conjuntura em que --em face de desafios nada triviais no futuro próximo-- ninguém se aventura a discutir a sério o que precisa ser feito para colocar a economia brasileira de volta nos eixos. Se até o óbvio, amplamente noticiado (ainda bem!) pela imprensa, vira objeto de censura, pouco falta para que fujamos da controvérsia como quem tem um miúra nos calcanhares.

Cavalo de pau. Sim ou não? - CELSO MING

O ESTADÃO - 30/07


Não dá para afirmar que o governo Dilma tenha cometido erros apenas pontuais na condução da política econômica, como o represamento das tarifas de energia elétrica e de combustíveis ou a adoção de técnicas esquisitas de contabilidade criativa.

Se a presidente for conduzida a um segundo mandato também não bastarão correções pontuais de política econômica. Mudanças mais profundas terão de acontecer para virar o jogo, porque os erros foram também mais profundos, embora Dilma continue negando, como fez nessa segunda-feira na sabatina realizada pelo jornal Folha de S.Paulo em Brasília.

Mas como providenciar mudanças profundas se, nos primeiros quatro anos, as autoridades - e não apenas a presidente Dilma - insistiram em dizer que não há nada de errado com a economia e os programas de assistência social (Bolsa Família, por exemplo) tiveram tanto êxito que compensam eventuais equívocos cometidos ao longo do caminho?

A desoneração dos encargos trabalhistas, que contemplou apenas um punhado de setores, custou R$ 50 bilhões em renúncias tributárias só no primeiro semestre deste ano e deverá superar os R$ 100 bilhões até o fim de 2014. É mais do que o governo federal arrecada em um mês. E, no entanto, ninguém conseguiu ver os resultados. A indústria continua empacada, entulhada em estoques, perdendo competitividade todos os dias, despedindo mais gente do que contratando.

O programa de concessões de serviços públicos, destinado a empurrar os investimentos em infraestrutura, não consegue decolar. O erro não foi só tentar tabelar o lucro (Taxa Interna de Retorno) das empresas vencedoras dos leilões, mas a incapacidade do governo de gerenciar o processo e de apressar a concessão de licenciamentos ambientais.

O erro de fundo foi estratégico: foi não ter estratégia. O governo Dilma tentou inovar, desvencilhar-se do tripé original (inflação na meta, câmbio flutuante e formação de superávit primário de 3,1% do PIB) e tudo o que conseguiu foi desarrumar a economia. O resultado é a sucessão de avanços miseráveis do PIB, inflação mais perto dos 7% do que dos 6%, finanças públicas desorganizadas, investimento em queda, aumento do rombo das contas externas (déficit em conta corrente) e tombo generalizado dos níveis de confiança. Isso aí nada tem a ver com ideologia ou com concepção de linha administrativa. Tem a ver com divórcio entre políticas adotadas e resultados a serem alcançados.

Dentro do governo ainda há aqueles que sustentam que a economia só precisa de alguns ajustes e não de um cavalo de pau. Talvez não precise de tudo isso, seja lá o que signifique, na prática, dar um cavalo de pau. Terão de ser bem mais do que alguns ajustes.

A retomada da confiança do investimento, do crescimento sustentável e do controle das finanças públicas não pode mais ser alcançada com experimentos. Exige a volta à solidez dos fundamentos. Mas como justificar essa eventual reviravolta sem reconhecer os erros passados e sem contrariar aqueles que justificaram e continuam justificando a chamada Nova Matriz Macroeconômica?


Argentina não é mais aquela - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 30/07


Um calote dos vizinhos deve afetar menos as finanças do Brasil desta vez, mas não sairá de graça


A ARGENTINA pode estar em calote hoje. O Brasil é um dos países mais frágeis entre "emergentes" maiores, escreveu o pessoal do FMI num relatório divulgado ontem.

A produção de más notícias domésticas continua em ritmo notável, ainda que não desastroso. Risco de tumulto na vizinhança e degradação da imagem econômica brasileira certamente colaboram para deteriorar a nossa situação. Mas pouco, provavelmente. Pior mesmo é que a confiança de empresários (indústria e comércio de São Paulo) ainda cai, assim como o total de crédito concedido a taxas de mercado, sem direção do governo, como se soube ontem.

A Argentina tinha até hoje para chegar a um acordo com credores que ganharam na Justiça dos EUA o direito de receber na íntegra dívidas repudiadas no calote de 2001, para resumir de modo breve uma história enrolada. Sem acordo ou pagamento (impossível), a Argentina dará oficialmente outro calote.

O "evento de crédito" não deve mexer com a finança mundial, provavelmente nem com a brasileira, embora as sequelas do calote devam deteriorar a situação argentina, segundo até os raros observadores ponderados da economia dos vizinhos.

Desde 2001, a Argentina está fora do mercado de crédito mundial, praticamente não se financia lá fora. Logo, esse calote não vai afetar dívidas novas, que praticamente inexistem. Além do mais, apesar da desconfiança em relação a países emergentes "frágeis" ou "vulneráveis", a finança mundial não deve associar os problemas desses "emergentes" aos da teratológica situação argentina. Isto é, não deve haver "contágio".

No entanto, os argentinos esperam desvalorização adicional do peso, o que deve dar em mais inflação e recessão algo maior. A Argentina, como se sabe, compra muito produto industrial do Brasil. Comprava, aliás. Deve comprar ainda menos, com calote e mais crise.

Neste semestre, as vendas brasileiras para a Argentina caíram 25,5% em relação ao primeiro semestre de 2013. As exportações de carros caíram 47%. As de caminhões, 44%. De autopeças, 39%. Quem vende tratores, pneus, sapatos, máquinas e matéria-prima de plásticos também pena.

Não é um desastre extenso, mas atrapalha bem, como parece óbvio, dado o peso da indústria automobilística.

O FMI fez ontem algumas manchetes de noticiários "em tempo real", mas chove no molhado. Repete diagnóstico vulgarizado desde meados de 2013: países com inflação e deficit externos altos estão mais sujeitos a tensões quando vier o aperto monetário nos EUA, em 2015. O Brasil está nessa lista, com África do Sul, Argentina, Índia, Indonésia, Rússia e Turquia.

No caso de reação tumultuada da finança à mudança dos juros americanos, pode haver menos crédito externo, venda de ativos brasileiros (juros sobem, ações caem, real se desvaloriza), como se viu na reação demente do "mercado" a um indício de aperto americano, de maio de 2013 ao início deste ano.

Tudo isso, Argentina, FMI, tensão financeira, aperta o nosso calo. Mas nosso problema principal é ter dado tiros no próprio pé (consumo, inflação, juros e deficit externo e fiscal altos).

Missão e desafios no caminho do agronegócio - LUIZ CARLOS CORRÊA CARVALHO

O ESTADÃO - 30/07


Ao analisar o acelerado processo de crescimento populacional, da renda per capita e da urbanização na Ásia, em especial na China, maior comprador mundial de commodities agrícolas, tem-se a confirmação do desafio que é hoje denominado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) como de segurança alimentar. Afinal de contas, recentes estimativas da consultoria McKinsey dão conta de que a China terá, em 2025, nada menos do que 221 cidades com 1 milhão de habitantes. Somado às 23 cidades chinesas que deverão ter mais de 5 milhões de pessoas, chega-se a um aumento na população urbana da China na ordem de 330 milhões.

É mais gente vivendo nas cidades, com novos hábitos de consumo e maior renda. Resultado: maior demanda por carnes, leite e ovos, fibras, etc. A dimensão do potencial explosivo de consumo futuro pode ser medida por uma colher de açúcar. Há dois anos, o consumo anual per capita de açúcar no interior da China era de 2kg por pessoa, enquanto nas cidades era de 20kg. Em nível global, para os próximos dez anos, teríamos de aumentar em 44 milhões de toneladas a produção anual de açúcar, mais do que o Brasil produz atualmente. E esse quadro vai além: hoje, no mundo, 14% das commodities como cana, milho, trigo e os óleos vegetais - soja, canola e palma - são para a produção de biocombustíveis. E vai crescer!

Por esses dados, tem-se a noção da missão que o futuro reserva para o agronegócio brasileiro. E tal missão foi ainda mais magnificada pela recomendação da FAO e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de que o Brasil deverá responder por, pelo menos, 40% do fornecimento de alimentos projetados até 2050. É, indubitavelmente, a janela de oportunidade mais clara que temos hoje em âmbito mundial no horizonte de curto e de médio prazos.

Em razão dessa proposta desafiadora, espera-se, tanto do setor privado envolvido no processo produtivo quanto do governo, uma atitude moderna, arrojada e colaborativa, no sentido de considerar este segmento estratégico para o Brasil. Afinal, ele responde por 25% do produto interno bruto (PIB) e por cerca de 40% das exportações brasileiras. Na condição de grande celeiro tropical, o Brasil é, hoje, o terceiro maior exportador agrícola do mundo, atrás somente dos Estados Unidos e da União Europeia. Além disso, o produtor rural desempenha um papel vanguardista no que diz respeito à questão da sustentabilidade e no uso de tecnologia, pois tem conseguido ampliar a produção somente com ganhos de produtividade, sem aumento da área plantada.

Essas conquistas se devem a uma visão sistêmica e ampla dos negócios ligados ao campo, que foi incorporada aos processos produtivos pelos empresários por meio de atividades sofisticadas nas áreas de biotecnologia, mecanização e tecnologia da informação. Trata-se de uma realidade bem distante daquela vivida no passado.

O conceito das cadeias produtivas, lançado por Harvard e incorporado à realidade brasileira há cerca de 20 anos, envolvendo os elos que vão de bens de capital e insumos, passando pela produção agrícola e industrial, indo à distribuição, atacado e varejo, incluindo ainda as exportações, explica o peso e a importância da cadeia agroindustrial na economia do País.

Essa dinâmica impressionante do agronegócio brasileiro decorre da necessidade vital de ganhar competitividade. É um desafio que não se pode perder de vista no presente e no futuro, com a manutenção dos investimentos em pesquisas e em inovação. Existem no País vários casos de sucesso para exaltar a capacidade empreendedora de pequenos, médios e grandes agricultores. Fizemos uma mudança monumental na forma de produzir em solos quimicamente mais pobres do Cerrado, com o sistema de plantio direto na palha, a produção conjunta de etanol e de bioeletricidade e a integração lavoura, pecuária e floresta. Não é pouca coisa e isso se deve à enorme criatividade brasileira.

Para que todos esses avanços se traduzam na continuidade da posição vanguardista que o País ocupa no cenário agrícola mundial, é necessário haver bastante harmonia entre os atores privados e o governo, que deve funcionar como um facilitador. Atuando assim, não teríamos, por exemplo, uma situação em que nossa produção de grãos praticamente duplicou em dez anos sem contar com a equivalente expansão da infraestrutura de transporte, armazenamento e logística.

Essas deficiências anulam os ganhos de competitividade alcançados no campo. Não podemos, por exemplo, ter descontinuidade de políticas públicas, assim como não é compreensível a existência de tantas instâncias que são, em tese, responsáveis pela formulação e pela aplicação da política agrícola. Precisamos dessa sinergia para estarmos em condições de relevância geopolítica no século 21 e em condições de atender às expectativas do mercado global.

Todos esses pontos estarão em debate no 13.º Congresso Brasileiro do Agronegócio, que será promovido pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) no dia 4 de agosto, em São Paulo, com o tema Agronegócio Brasileiro: Valorização e Protagonismo. No evento será analisada também uma proposta de ação elaborada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e entregue aos representantes dos três candidatos à Presidência da República mais bem posicionados nas pesquisas eleitorais.

Nossa expectativa é de que o Brasil aproveite este momento extraordinário de mudanças globais, num cenário de franca revolução do uso sustentável de recursos naturais, para reafirmar sua posição de protagonista e líder desse processo transformador da geopolítica mundial.

Banco Central, dr. Jekyll e Mr. Hyde - MARCELO CURADO

GAZETA DO POVO - PR - 30/07


A existência de coordenação na política econômica é um dos elementos mais importantes para uma boa gestão na área. Por exemplo, se o problema a ser enfrentado num determinado momento é o nível elevado de inflação, o Banco Central e o Ministério da Fazenda devem agir de modo coordenado para atingir esse objetivo. Numa situação como esta, cabe ao Banco Central reduzir a liquidez e ampliar a taxa de juros; e, ao Ministério da Fazenda, aplicar uma política fiscal contracionista, reduzindo, por exemplo, os gastos do governo.

Problemas de coordenação na gestão da política econômica não são raros no Brasil. Na gestão de Lula os conflitos entre as políticas mais conservadoras do Banco Central e a heterodoxia do Ministério da Fazenda foram amplamente relatados. No entanto, as medidas anunciadas pelo Banco Central, alterando as regras do depósito compulsório e para as reservas dos bancos, colocam o tema da coordenação da política econômica em outro patamar. Para entender o problema, é necessário regressar um pouco no tempo.

Entre julho de 2011 e abril de 2013, o Banco Central, mesmo num contexto de inflação acima do centro da meta, implementou uma política de redução da taxa de juros a qualquer preço. O resultado desse equívoco é bem conhecido. Hoje operamos com a inflação colada no teto da meta. A situação só não é pior em função da ingerência sobre os preços administrados. Em 2013, a variação de 5,91% no IPCA resultou de uma elevação de 7,3% nos chamados preços livres e de 1,52% nos preços monitorados.

Ao perceber o equívoco, o Banco Central mudou de rumo e passou novamente a executar uma política de aperto monetário através da ampliação da taxa Selic. A última ata do Comitê de Política Monetária evidencia a preocupação da instituição com a inflação e sua resistência à queda. Neste contexto, a ampliação da liquidez é uma medida equivocada sob vários ângulos de análise. O mais evidente é que, ao fazê-la, o BC age no sentido contrário da política de manutenção de um patamar elevado para a taxa Selic.

O Banco Central justifica que precisa estimular a atividade econômica por meio da ampliação do crédito. De fato, a medida pode ter um impacto positivo sobre as decisões de consumo, ampliando ainda mais o já temerário nível de endividamento das famílias. Acreditar que o problema do baixo investimento será solucionado com ampliações no crédito é outro equívoco. Não há falta de crédito para a realização de investimentos. O problema é de outra natureza. A expectativa de lucros dos empresários encontra-se deprimida, fruto da deterioração do estado de confiança geral da economia. Em grande medida, este cenário é o reflexo da confusa política econômica administrada pelo Banco Central, mas especialmente pelo Ministério da Fazenda na gestão Dilma.

Em última análise, a medida é mais um capítulo da infeliz gestão da política econômica de Dilma e o “samba de uma nota só” do estímulo à demanda. As medidas anunciadas colocam a discussão sobre coordenação da política econômica em outro patamar: o da incongruência das medidas tomadas pelo mesma instituição. Tal como no romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, o Banco Central assume uma espécie de dupla personalidade, ora buscando agradar àqueles que se preocupam com a inflação, ora preocupado em agradar àqueles que acreditam que falta demanda e que é necessário estimular os gastos no sistema. O resultado desta bipolaridade é o aumento da incerteza e a perda de credibilidade na gestão da política econômica.

Os fatos da crise - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 30/07


A presidente Dilma disse à "Folha de S. Paulo" que "todos nós erramos" e "o mundo errou" ao minimizar a crise de 2008. Ela socializou um equívoco que a maioria não cometeu. O ex-presidente Lula chamou de "marolinha", mas economistas, jornalistas, empresários e até os dirigentes do Banco Central da época entenderam que era uma crise profunda. Basta ler o noticiário do período.

Quem errou na análise deveria assumir que errou. Seria mais tranquilizador, porque haveria menos risco de repeti-lo. Por exemplo, agora ela afirma que: "nenhum país se recuperou". E, de novo, os fatos e os números conspiram contra a convicção da presidente. Os países que enfrentaram o olho do furacão estão em recuperação, e as projeções de crescimento do PIB da Alemanha (1,9%), Estados Unidos (1,7%) e Reino Unido (3,2%) e até do Japão (1,6%) são maiores do que as do Brasil em 2014. O FMI projeta para o Brasil 1,3%. Os economistas pesquisados pelo Banco Central, 0,9%.

O mundo hoje não é culpado pelo nosso fraco desempenho porque Estados Unidos, Europa e Japão estão em recuperação e com juros próximos de zero. A economia externa tem ajudado, mesmo assim o crescimento do país tem encolhido e a inflação não sai do teto da meta. Era o momento de aproveitar e crescer. Depois, quando os juros americanos subirem, haverá menos capital para nos financiar.

Dilma tem razão sobre a taxa de desemprego. Ela veio caindo ano a ano durante todo os governos Lula e Dilma. É a menor taxa desta série: 5% na Pesquisa Mensal de Emprego. O enigma sobre o qual sua administração deveria estar debruçada é: por que, com taxa de desemprego tão baixa, há uma explosão do custo com o seguro-desemprego de 345% desde 2003, quando a inflação do período foi 71%? O aumento da formalização não explica alta tão forte.

Voltando ao crescimento e olhando em volta, o que se vê? Das dez maiores economias da América Latina, o Brasil só cresceu mais do que o México e a Venezuela no acumulado desde o ano da crise. A Venezuela está no descaminho há muito tempo, e o México sofreu o baque de frente da economia americana, da qual é excessivamente dependente. O Brasil cresceu 19,3% no acumulado entre 2008 e 2013. O Chile cresceu 25%; Colômbia, 26%; Equador, 30%; Bolívia, 34%; Argentina, 35%; Uruguai, 37%; e Peru, 43%.

Nesse grupo de dez, nós temos a quinta maior inflação acumulada. Só ficamos melhores do que a Venezuela e a Argentina, que estão com taxas descontroladas, Uruguai e Bolívia.

O Brasil está crescendo menos do que a maioria dos países da região, e com mais inflação que a maioria dos vizinhos. Não é a crise externa que está nos afetando agora. Já nos afetou no passado. Os maiores problemas são feitos por nós mesmos.

A propósito, o Brasil lidou bem com a crise no primeiro momento. Apesar de o ex-presidente Lula ter minimizado o tamanho da onda, o Banco Central não cometeu esse erro. As medidas anunciadas pelo BC foram ágeis, eficientes e amorteceram o impacto. O país crescia a 6%, em 12 meses, quando houve a quebra do Lehman Brothers e toda a desorganização financeira externa, e foi para um quadro recessivo em 2009. Recuperou-se em 2010. Mas ao usar abusivamente de subsídios a setores, alquimias fiscais e estímulo ao endividamento, o país colheu baixo crescimento e alta inflação.

Não há um "pessimismo inadmissível" no país. Há uma constatação de que o quadro é desfavorável. Os sinais são frequentes: ontem foi a Sondagem da Indústria da FGV; na sexta-feira, será a produção industrial do IBGE. Negar o problema não o faz desaparecer.


Terceirizar atividade-fim: é eficiente limitar? - SERGIO LAZZARINI

O ESTADÃO - 30/07


O Supremo Tribunal Federal deve analisar, em breve, julgamentos trabalhistas condenando a prática de terceirização de atividades consideradas, em tese, como "fim" - por exemplo, empresas agroindustriais que contratam prestadores de serviço de plantio ou empresas de telecomunicações que contratam operadores especializados de call center. Como destacado em ótimo artigo por José e Eduardo Pastore em 29/7 no Estado, a decisão pode ter impacto fundamental na legislação trabalhista.

Os críticos da terceirização se baseiam no argumento de que a empresa estaria repassando processos essenciais para prestadores de serviço externos somente para demitir e pagar menores salários. Ainda segundo o argumento, atividades terceirizadas poderiam causar uma "precarização" das relações de trabalho. Esse argumento, no entanto, tem um problema fundamental: como definir com exatidão o que é uma atividade-fim?

Voltando a um dos exemplos acima, uma empresa que processa um produto de origem agrícola precisaria realmente se envolver em atividade de produção rural? Qual seria, afinal, a sua atividade-fim? O processamento e a venda do produto industrializado ou a produção agrícola? Justamente para evitar esse questionamento inconclusivo, há muito o ferramental técnico especializado no tema mudou o foco do debate. A unidade de análise deve ser a transação. E as empresas deveriam organizar a transação da forma mais eficiente possível, independentemente se é considerada "fim" ou não.

Retornando novamente ao exemplo da empresa agroindustrial, imagine que a atividade de plantio ocorra só uma vez ao ano e exija um maquinário muito especializado. Pode ser muito ineficiente para a empresa fazer, ela própria, essa atividade. Uma empresa terceirizada poderia não só usar o maquinário em mais clientes, tornando-o menos ocioso, como também aprender ao longo do tempo como melhor executar a operação por meio de múltiplos contratos de serviço. Se os custos de desenhar, monitorar e fazer cumprir contratos entre o cliente e o fornecedor não forem muito elevados - os chamados "custos de transação", no jargão econômico -, então será mais eficiente para a empresa terceirizar.

Por outro lado, em alguns casos pode ser recomendável integrar uma atividade aparentemente não-fim. Por exemplo, muitos varejistas têm áreas internas de tecnologia de informação que poderiam, a princípio, ser terceirizadas. Mas, dependendo do grau de customização do serviço e do conhecimento exigido às necessidades da empresa, além dos riscos de vazamento de informação proprietária, os custos de transação podem ficar proibitivos. Essa lógica baseada em custos de transação já rendeu ao menos três Prêmios Nobel em Economia (Ronald Coase, Douglass North e Oliver Williamson).

É verdade que esse argumento não diz nada sobre o risco de precarização apontado pelos críticos. Esse risco existe e deve ser cuidadosamente observado. Mas a pergunta relevante é: a precarização é causada pela terceirização ou pela falta de fiscalização de uma determinada atividade? Se uma empresa não adere a práticas trabalhistas adequadas, o melhor remédio é obrigar a empresa-cliente a integrar essa atividade ou punir a má conduta da empresa prestadora de serviço? Na mesma linha, a preocupação com os menores salários exige um entendimento mais detalhado sobre as suas reais causas. Sabemos que salários respondem muito positivamente a investimentos em educação. Nesse sentido, os grupos organizados que se opõem à terceirização poderiam gerar um impacto muito mais duradouro nos salários se pressionarem por mais apoio ao treinamento e qualificação profissional dos funcionários de serviços terceirizados.

Em debates importantes como este, é preciso cuidar para não gerar "soluções" que podem até ter boa intenção, mas que deixam de atacar a raiz do problema e podem trazer efeitos deletérios para a produtividade do País.