domingo, maio 25, 2014

Ser ou não ser - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 25/05

Não parece haver, nem de longe, o entusiasmo anterior. Ninguém discute a escalação do time, ninguém pintou rua ou fachada


Acho que já tive a oportunidade de referir-me aqui às muitas glórias futebolísticas de Itaparica. Poderia estender tais glórias a diversos outros esportes, mas estes estão sujeitos a controvérsias, como a protagonizada por meu saudoso amigo Luiz Cuiuba, já lá se vai algum tempo. Em acalorada discussão no Largo da Quitanda, ele sustentou que as Olimpíadas eram uma jogada ardilosa para subverter nossos valores mais caros e, principalmente, trocar nossas lindas mulheres pelos bagulhos dos gringos. Baseado na conformação física de algumas atletas estrangeiras que vira na televisão, notadamente as campeãs de lançamento ou levantamento de pesos, ele não conseguia compreender como aquelas jamantas descomunais podiam ser o ideal olímpico. Claro que era para ludibriar a gente. Queriam convencer-nos a nos livrar de nossas mulheres, afamadas em todo o mundo pela sua excelsa formosura, e, em troca, recebermos ideais olímpicos, Deus que nos protegesse daquelas baleias parrudas, opinião esta acatada pela grande maioria dos presentes.

Portanto, para não entrar em terreno muito polêmico, fico no futebol, suficiente para render diversos volumes de histórias. Difícil é saber por onde começar. Nasceu em Itaparica, por exemplo, Chupeta, o maior jogador de futebol que os céus do Brasil jamais cobriram e ainda há testemunhas que não me deixam mentir. Foi com um time itaparicano que ocorreu um evento singular, já lembrado aqui, mas merecedor de nova menção. Num jogo, se não me engano, contra uma agremiação de Maragogipe, Vavá Paparrão fraturou a perna em dois lugares, mas só notou depois que o jogo acabou e o sangue esfriou. Finado Nascimento, respeitado no futebol e na clarineta, era o juiz de maior autoridade no Recôncavo e grande disciplinador, chegando a aplicar cascudos em certos atletas de conduta particularmente reprovável.

Em matéria tática, houve muitas inovações na ilha, que não foram à frente por uma série de circunstâncias. Assim ocorreu com o esquema bolado pelo técnico e cartola Júlio Perrengue, o injustiçado 10-10, que nunca foi adotado por ninguém, mas devia ter tido uma oportunidade. Júlio me explicou uma vez que o esquema dele consistia em fazer os dez jogadores de campo saírem de bolo para cima do adversário, arreganhando os dentes e dando gritos de guerra, assim infundindo terror nas hostes opositoras. Menção se faça, outrossim, a avanços notáveis que, por falta de marketing, se perderam, entre eles o jogo eólico, que consistia em usar os ventos do dia em proveito do time. Antigamente, isso era feito com a ajuda de um mestre de saveiros conhecedor íntimo dos ventos e das virações, mas hoje deve ser programável para computadores. Por exemplo, o jogador sabe que, naquele instante, o vento forte tal ou qual vai soprar e aí cobra o escanteio conforme o dito vento, é uma coisa altamente científica, que a ilha já praticava em priscas eras.

Nas Copas, como em todos os eventos que envolvem a nacionalidade, nossa participação nunca faltou. A de 1950 foi trágica, com gente passando mal, revolta ou até rompimento com os santos e outros eventos traumáticos, até hoje recordados pelos mais antigos. A de 1954 não valeu, por causa de Mr. Ellis, um juiz inglês, cujo nome nunca esqueci, vastamente denunciado como ladrão pelos narradores e comentaristas e responsável claro pelos quatro a dois que a Hungria nos aplicou. Houve pancadaria no estádio, durante e depois do jogo, e vários conterrâneos se ofereceram para combater na guerra que viria, contra a Inglaterra, a Hungria, as duas juntas ou quem lá fosse, pois que nunca corremos de guerra.

Na nossa primeira Copa, em 1958, lançamos aos ares a campanha Seca Lidirrólmi para a final. Lidirrólmi, na pronúncia local, era Liedholm, artilheiro da Suécia que fez o primeiro gol do jogo contra o Brasil. O brado “seca Lidirrólmi!” prorrompeu do Jardim do Forte e rasgou as nuvens por sobre todo o Recôncavo. Jamais alguém havia sido secado daquela forma tão unânime e simultânea. Vozes despeitadas podem negar, mas o fato é que Lidirrólmi não fez mais gol nenhum, e, naquele dia inesquecível, como sabemos, o time dele perdeu de cinco a dois.

Desta feita, contudo, não parece haver, nem de longe, o entusiasmo anterior. Ninguém discute a escalação do time, ninguém pintou rua ou fachada, ninguém comprou bandeira nova para pendurar em cima da varanda. Que estaria acontecendo? O patriotismo que parecia ser parte indissociável do DNA itaparicano foi atacado por algum vírus destrutivo? Graves questões, acompanhadas do pressentimento de que o mundo vai acabar, ou qualquer coisa assim. E mais lenha foi lançada à fogueira depois do pronunciamento de Zecamunista. O festejado líder subversivo voltou, como sempre vitorioso, de um concorrido torneio de pôquer em Ipiaú e, ao chegar ao Bar de Espanha e ver que se falava sobre a Copa, começou um imediato discurso em que afirmou que era dever de todo patriota brasileiro ser contra a Copa.

— Nós vamos organizar uma grande manifestação, uma passeata geral! — disse ele, com o punho no ar. — Essa Copa não é nossa, é deles! O povo da ilha sairá em peso às ruas para protestar!

E, segundo ele me informou ao telefone, a coisa ficou séria e a ideia da passeata recebeu a adesão de praticamente toda a ilha.

— Mas agora eu tenho de desligar, não posso perder a reunião da organização da passeata, que vai ser daqui a pouquinho.

— Eu pensei que já estava tudo organizado.

— Mas não está — disse ele. — Eu descobri que temos que mudar a hora da passeata para todo mundo ter tempo de ver o jogo.

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