sexta-feira, maio 09, 2014

A volta do retorno - FERNANDO GABEIRA

O ESTADO DE S. PAULO - 09/05
Na entrevista de Lula, o que me preocupou mais foi ele ter encarnado um Dom Sebastião

Cuidado com a volta do retorno." Quem me dizia sempre isso era Marinho Celesti­no, um cabeleireiro capixaba que estudou cinema em Paris e morreu no Brasil. Não sei se que­ria expressar com isso a circulari­dade do tempo ou se usava a ex­pressão apenas para advertir os perigos de uma recaída. O movi­mento  'Volta, Lula" sempre me lembra a expressão de Marinho Celestino: a volta do retomo, uma espécie de bumerangue. 

Durante um tempo, ele se comportou apenas como um ex-presidente. Achei que merecia o habeas língua que sempre confe­rimos àqueles que já cumpriram sua tarefa. Clarice Lispector, num belo conto chamado Feliz Aniversário, conta a história de uma festa para a mulher que fa­zia 89 anos e de quem todos que­riam arrancar uma palavra. A velha permaneceu calada, apesar de muitas provocações, até que, no final da festa, resolveu falar só isto: "Não sou surda!". 

Para mim, Lula ainda é um jovem. Desenvolvi uma tolerância a suas frases e, em certos momentos, até me diverti com elas. Era só um ex-presidente, com di­reito a parar de fazer sentido. 

Agora, que querem lançá-lo de novo à Presidência, é preciso ter cuidado com a volta do retor­no. Não me preocupa tanto que tenha dito que o julgamento do mensalão foi 80% político e 20% técnico. Lula aprendeu, ao lon­go destes anos, a usar os núme­ros para tornar a mentira convin­cente. Se o apertarmos num debate, ele vai conceder: "Está bem, então 79% político, 21% téc­nico". Ele sabe que números que­brados convencem ainda mais que os redondos. O que me preo­cupou mais nessa entrevista aos portugueses foi ele ter encarna­do o espírito de salvador, um ar­quétipo da nossa cultura luso- brasileira, um Dom Sebastião. 

Ele disse que, apesar do que noticiavam os jornais, TV e opo­sição, o povo sempre olharia nos seus olhos e acreditaria na sua verdade. Isso implica uma visão pobre da democracia e, sobretu­do, do povo. Como se as pessoas fossem completamente blinda­das diante do debate nacional, como se não fossem curiosas, não formassem opinião por meio da troca de ideias, como se não estivessem constantemen­te reavaliando suas crenças com novos dados. 

Nessa frase de Lula, o povo só se acende com o seu olhar hipnó­tico e é nele que procura a verdade, não nos fatos e nas evidên­cias que se desdobram. 

Cuidado com a volta do retor­no. A realidade mostra que as pessoas avançaram, que valorizam melhorias materiais, mas pedem também mais do que is­so. Seria interessante para o PT e para o próprio Lula darem uma volta pelas ruas do Brasil e ten­tar a fórmula olho no olho. No mínimo, vão se desapontar. 

Lula não conseguiu, com olhar magnético, convencer o povo brasileiro de que a Copa foi uma decisão acertada num país com tantas dificuldades. Tanto ele quanto Gilberto Carvalho fi­cam perplexos diante das críti­cas. Como é possível não cele­brar a Copa no Brasil? Neste caso, a fantasia de uma identificação mítica com o povo vai para o espaço. Como restaurá-la? Com olho no olho? O olhar número cinco falhou. A única saída é partir para ou­tros truques, como, por exem­plo, fazer com que os copos se movam sozinhos nas mesas, co­mo naquelas sessões espíritas no princípio do século 20. 

Na entrevista em Portugal, Lu­la procurou explicar também por que o povo olhava no seu olho e o apoiava. Mencionou, mais uma vez, a história da mãe que o aconselhou a andar sem­pre de cabeça erguida. Um con­selho de mãe e o olho no olho são os talismãs que o protegem de todas as acusações, que lhe dão força, inclusive, para prote­ger em seu governo grandes e pe­quenos bandidos da política nacional. Não e à toa que alguns ratos começam a abandonar o navio da candidatura Dilma. Eles anseiam também por miga­lhas desse poder de Lula, que­rem se esconder embaixo do manto protetor. 

E Dilma, ou o fantasma dela, apareceu na televisão. Gostei da maquilagem, do tom da pele, em­bora para muitos ela estivesse um pouco pálida. Os profissio­nais trabalharam bem no rosto, no penteado e mesmo nas ideias do texto. Você querem mudan­ça? Nós somos a mudança. 

Está chegando um tempo em que o abuso das palavras perde sua elasticidade. Um tempo em que a onipotência de um supos­to magnetismo tem de descer ao mundo dos debates, do choque de ideias, da avaliação perma­nente dos rumos do País. E o oca­so da magia. Da cartola, saem apenas os velhos e combalidos coelhos: aumento da cesta bási­ca, modesta redução no Impos­to de Renda. 

O naufrágio se define com a perda do horizonte. Mesmo o fa­moso mercado parece esperar a derrota de Dilma. Quando cai nas pesquisas, a Bolsa sobe. Mas nem sempre o mercado tem ra­zão diante da política. Senão, substituiríamos o debate parla­mentar pelo grito dos correto­res na Bolsa. Realizar uma política social generosa, muitas ve­zes,bate de frente com o merca­do. Só é possível levá-la adiante, de fato, num quadro econômico de crescimento sustentável. E parece existir no mercado a compreensão de que a atual política econômica está fracassando, de que Dilma foi má administradora em campos vitais, como a energia, e incompetente para deter a degradação da Petrobrás. 

Não sei como Dilma e Lula vão se apresentar na campanha. Ele vai precisar de uma lente de contatos para mudar a cor dos olhos, em caso de necessidade. Dilma não poderá repetir apenas o que escrevem os marqueteiros. Ela apenas registrou que os ratos abandonavam o barco, mas não se perguntou em ne­nhum momento por que o bar­co começa a afundar. 

No debate, os dois, cada um com seu estilo, vão ter de expli­car o que fizeram do Brasil, que se vê agora sugado pela corrup­ção, gastando fortunas com as obras de uma Copa trazida pela visão megalomaníaca de Lula. Na África do Sul, ele até convi­dou atletas estrangeiros para se mudarem para o Brasil porque haveria tanta competição espor­tiva que nossas equipes não se­riam capazes de disputar todas. 

Nada como esperar a cam­panha presidencial de 2014. Por enquanto, o discurso do governo é 80% mentira e 20% malandragem. 


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