segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Diário de um repórter - JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

O GLOBO - 03/02

No dia em que eu conheci Ibrahim Sued, o “turco” estava mais agitado do que nunca, pois casaria ao fim daquela semana a sua única filha


No dia em que eu conheci o ator Wilson Grey, o mais famoso bandido das chanchadas, ele jogava na roleta clandestina que um bicheiro bancava num prédio da Rua Senador Dantas. Parecia cena de seus filmes. O ambiente tosco, a fumaça dos cigarros, uma aglomeração de desocupados gastando a grana e o tempo roubado do almoço. Era a saleta de um mezanino fétido. Alguém poderia ser discretamente esfaqueado num canto — e tudo ficaria na mesma. Era uma bolha fora do tempo, fora da lei e do vai-e-vem da Cinelândia. Eu estava lá na condição de desocupado, de vizinho do estabelecimento, pois a redação funcionava no quarteirão seguinte. Foi no início dos 1970, quando os bicheiros financiavam escolas de samba e havia um clima de tropicalismo-noir na contravenção. Um dia tomei coragem, bati no ombro de Wilson Grey e disse que queria fazer uma reportagem com ele. Ali. O homem fez cara de mau. Respondeu que me seria todo falante e exclusivo se a roleta seguinte parasse no vermelho 21, onde havia investido uma dúzia de merrecas. Topei. Eu nunca mais jogaria uma entrevista aos humores de uma roleta. Perdi. Quer dizer, perdemos. Antes de sumir, como se eu tivesse responsabilidade sobre as idiossincrasias da roleta, o bandido me encarou com um ar de “você-está-com-os-dias-contados”.

No dia em que eu conheci Millôr Fernandes atravessei todo o salão da festa para cumprimentar o grande pensador e humorista. Precisava agradecer o comentário que ele havia publicado sobre meu último livro: “Joaquim, perito, sem confundir, em misturar alhos com bugalhos, já que as duas coisas são a mesma”. Millôr, perito em confundir, já que este é um dom da inteligência, deu um sorriso enigmático quando eu o cumprimentei. Em seguida, me misturou na cabeça os alhos com os bugalhos da insegurança: “Ah, você gostou?!” — e simulou, divertido, um ar de que não era exatamente para tanto.

No dia em que conheci a atriz Norma Bengell, eu não estava imbuído de qualquer pauta. Era apenas um encontro fortuito numa cantina do Leme, mas eu precisava narrar como uma frase sua, perdida em meio a uma entrevista, virara bordão nas redações. Bengell tinha dado a entrevista a uma repórter muito bonita. Disse-lhe que durante uma filmagem visitara uma tribo na Amazônia onde os índios eram todos “bi como nós”. A repórter engoliu em seco. Ficou com vergonha de aprofundar a história e, em linguagem de branco, devolver com um “nós quem, cara pálida?”. Achou melhor calar a dúvida. A bela repórter, no entanto, contou na redação — e desde então um grupo de jornalistas, quando está a fim de diversão e sacanagem, emprega nas suas conversas o “bi como nós”. Norma não lembrava mais da história. Riu muito quando contei, e lançou a suspeita sobre si mesma: “Xi, acho que era cantada!”.

No dia em que eu conheci Ibrahim Sued, o “turco” estava mais agitado do que nunca, pois casaria ao fim daquela semana a sua única filha. O colunista era um homem de impressionante capacidade para a busca da notícia, foi um reformulador do conteúdo do noticiário social, mas deixava a desejar pela sofisticação intelectual. Amigos o chamavam de “sentimentalmente grosso”. No tal dia em que o conheci, Ibrahim usou da sinceridade costumeira. Disse ter tido uma conversa franca com a filha, mas sem aconselhamentos maiores. Ele próprio acabara de sair de um divórcio, sabia da dificuldade do projeto conjugal. Não tinha certeza de nada, por isso poupou a moça de falsas sabedorias. Ibrahim me disse ter cravado apenas uma recomendação. Que a filha jamais fosse ao banheiro de porta aberta. Por mais íntimo que já estivesse o casamento, por mais que o casal já tivesse feito tudo na cama — Ibrahim me repetia o aconselhamento — uma mulher ao ir à privada deveria fechar a porta aos olhos do marido. Não sei se a moça seguiu as instruções. O casamento infelizmente acabou uma década depois.

No dia em que eu conheci Angela Ro Ro ela estava do outro lado do telefone e pedia, por caridade e urgência, que fosse até seu apartamento. O açougueiro da rua estava se dirigindo para lá, empunhando seu facão de labor, para resolver uma pendenga com ela. Ro Ro já tinha me acionado para algo aparecido meses antes. Era uma confusa história envolvendo um vizinho de porta, um papo que roçava em preconceito contra homossexuais e afins. Desta vez era o açougueiro. Pela manhã, ao levar a carne ao seu apartamento, o homem se desentendera com um amigo negro dela. Ro Ro pedia a presença da imprensa a fim de evitar a abertura de uma lacuna profunda na música brasileira. Cantora dos grandes dramas modernos, ao telefone, sem o piano para acompanhar, não passava tanta convicção. Eu pedi que Ro Ro me ligasse quando o futuro assassino se apresentasse à sua porta com a pavorosa arma do crime. Deu certo. Nunca mais nos falamos. Graças a Deus a grande cantora continua viva.

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