sábado, fevereiro 15, 2014

A bondade dos assassinos - GUILHERME FIUZA

O GLOBO - 15/02

País começou a matar Santiago ao ficar na dúvida sobre o que fazer diante dos boçais mascarados e seus chiliques medievais



O Brasil bonzinho assassinou o cinegrafista Santiago Andrade. Não foi outro o criminoso. Quem matou Santiago foi esse Brasil envernizado de bondade e infernizado de hipocrisia. Nenhum débil mental mascarado poderia ter matado Santiago sem a cumplicidade desse monstro.

A herança maldita da Primavera Burra foi apontada exaustivamente neste espaço. Os bem-pensantes e os demagogos — hoje praticamente indiscerníveis — continuaram matraqueando que os políticos precisavam ouvir “o recado das ruas”. Mentira. Não houve recado nenhum. Não há uma mísera mensagem aproveitável daquele carnaval cívico, onde multidões exuberantes marcharam contra tudo e contra nada — na mais patética perda de oportunidade política na era do Império do Oprimido.

É claro que esse heroísmo imaginário das passeatas não poderia acabar bem. Qualquer bando de almas penadas que fechava uma rua podia ser aplaudido pela sociedade engarrafada. “Desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil”, diziam os revolucionários de videogame. Mudando o Brasil para onde? Para o Afeganistão?

Ninguém perguntou. E a natureza não perdoa: onde não há luz, há treva. Rapidamente, o espaço sacralizado da revolução sem cabeça foi tomado pelo obscurantismo. E o Brasil começou a matar Santiago Andrade quando se permitiu ficar na dúvida sobre o que fazer diante dos boçais mascarados e seus chiliques medievais. Ou melhor: a parte mais bondosa e solidária desse Brasil não ficou na dúvida. Criou um movimento pela libertação dos detidos nas arruaças, black blocs e idiotas associados.

Deputados bonzinhos, intelectuais do bem e artistas antenados gritaram — alto — pela liberdade dos presos em manifestações. Não há artefato mais letal do que a bondade prenhe de ignorância e flacidez moral. E os comandantes da segurança pública, intoxicados pelo arrastão populista, passaram a declarar que “a polícia não está preparada para esse novo tipo de manifestação”. Um escárnio. A barbárie nunca foi tratada com tanto carinho.

Ora, o que se faz com criminosos que saem pelas ruas destruindo o patrimônio público e privado, sitiando cidadãos e atentando contra a sua integridade física? Prende-se. Depois processa-se, julga-se e condena-se. Com as leis que estão aí, com o aparato judicial e policial que está aí, sem um segundo de conversa fiada sobre novos tempos e nova boçalidade. Esse Brasil progressista que matou Santiago se permitiu hesitar diante da afronta ao estado de direito. Confundiu atentado com protesto, e resolveu (embora jamais vá confessar isso) relativizar a violência. Assassino.

Os criminosos que explodiram o crânio do cinegrafista foram identificados sem dificuldade, e estão presos. Mas eles mesmos e seus coleguinhas de terror se cansaram de protagonizar atos igualmente letais, fartamente filmados e fotografados — e puderam voltar tranquilamente para o Facebook e combinar o próximo programinha. Isso porque a sociedade civilizada cismou que não sabe combater “esse novo tipo de manifestação”. A mãe do sujeito que disparou contra Santiago, assustada, não sabia que tinha um criminoso em casa. O Brasil escondeu isso dela.

Quem se meteu a investigar os computadores dos covardes mascarados, chegando a deter alguns dos articuladores desse câncer, foi bombardeado pelos progressistas nas redes sociais. E lá ia o Brasil discutir se pode ou não pode condenar os facínoras ideológicos, deixando as mamães sem uma notícia decente de quem eram os seus pimpolhos homicidas.

Brasil, explique isso agora aos filhos de Santiago.

Não, ninguém vai explicar nada. Já estão chovendo teorias sobre o que é terrorismo, o que é black bloc, que reformas devem ser propostas ao Congresso Nacional (só rindo). Daqui a pouco o irrevogável Mercadante propõe um “plebiscito popular”, e o país volta tranquilamente à sua letargia assassina. Por falar em assassinato, os diplomatas do MST deixaram dez policiais gravemente feridos em Brasília. O Brasil está esperando um deles morrer para se horrorizar.

E o que aconteceu com os agressores? Foram recebidos em seguida por Dilma Rousseff no palácio, para um bate-papo de uma hora sobre reforma agrária. O que você está esperando para pegar sua borduna e ir atrás do que é seu?

Mas vá logo, porque o que é seu está sendo devorado rapidamente pelos amigos do povo — esses que a Primavera Burra não viu. Santiago morreu cobrindo um suposto protesto contra aumento das passagens de ônibus, e não se viu um único revolucionário ninja apontando sua revolta contra a usina de inflação do governo popular S.A. E Dilma pode ir ao aniversário do PT apoiar os mensaleiros presos — numa boa, sem nem um herói das ruas para vaiá-la na saída.

Santiago não teve sorte. Quem tem sorte no país dele é Delúbio Soares, que arrecada pela internet R$ 1 milhão em uma semana — livre de impostos e de covardes mascarados.

6 comentários:

Anônimo disse...

Ha muito tempo eu não lia uma matéria excelente como essa, contendo a VERDADE.
Sabe o que vai acontecer? NADA!
O povo não lê a sua matéria Sr Guilherme. Só leem as primeiras páginas dos jornais que ficam afixadas nos jornaleiros:FUTEBOL, DESGRAÇAS E MULHERES PELADAS. Para completar a alimentação da cultura nacional, chega-se em casa para assistir novelas e programas que destroem a nossa sociedade como um câncer cerebral.
A FAMÍLIA BRASILEIRA está destruída.
Sr Guilherme Fiuza, tudo vai ser esquecido...vem o CARNAVAL.
Oro pelo Brasil.

Assinado LUIZ CESAR

BRASILEIRO

Izacris disse...

Acabei de ler e de me emocionar com sua matéria.Infelizmente concordo com o comentário anterior que só a 1a pagina é lida e assim mesmo as notícias "bem rapidinhas" como futebol,BBB etc. Mas não podemos desistir...vou fazer a minha parte e divulgar seu texto, já que não tenho o dom da escrita como o Sr.

Anônimo disse...

Aí, me lembro de um personagem de Jô Soares, que demorava a compreender algo contra ele, e quando compreendia, dizia surpreso: "Ah,é, é?" Mas nesse instante o fato já acontecera. E o tempo, todos sabemos, não retroage.

É uma pena que o mesmo O Globo (grupo) que publica esse editorial, invade diariamente nossas casas com coisas excrescentes e alienantes, como o imoral e violento BBB.

Associação Park Way Residencial disse...

Excelente texto, como sempre.

Fiuza tem o dom de tirar dos acontecimentos o que realmente interessa e deixar o que não interessa de lado.

Essa faculdade permite que ele veja as coisas como realmente são e sua honestidade intelectual transmite os fatos já digeridos, já desvendados para o comum dos mortais.

Parabéns por sua mente privilegiada, pelo senso de humor.

Obrigada por me mostrar que não estou louca, que é isso mesmo que está acontecendo no nosso Brasil.

Maria disse...

Fiquei sem palavras ao ler este excelente artigo e me associo ao comentário anterior,agradecendo ao jornalista Guilherme Fiuza o conforto que recebi na angústia atual de ser brasileira.

martha correa da costa disse...

Fiuza, que bom ler em seu artigo a indignação que sinto pela criminosa omissão deste govêrno em exercer a sua obrigação de defender a população que está se manifestando contrária a baderna que impede o seu direito de reinvidicar o que nos é dado pela nossa constituição: educação, saúde e justiça.