quinta-feira, janeiro 09, 2014

Lembranças antigas, discussões novas - CORA RÓNAI

O GLOBO - 09/01

Qualquer documento oficial no país é infinitamente mais complicado do que deveria ser


Em 1999, três rapazes americanos lançaram um serviço que foi, pelos três anos seguintes, uma das experiências mais lindas da internet. O Napster juntava, num só lugar, todos os usuários que gostavam de música. Ele servia como ponto de encontro universal; os arquivos, em MP3, continuavam nas máquinas dos usuários, que davam, uns aos outros, acesso às suas respectivas coleções. Graças a isso, descobri música do mundo inteiro, gêneros que não conhecia, cantores de que nunca tinha ouvido falar. A minha playlist se transformou numa Torre de Babel cantante, com faixas em urdu, telugu, malayalam, pashto, grego, khmer, yorubá, kechua e servo-croata. Havia até alguma coisa em inglês e francês. Em troca, ofereci muita música brasileira para os meus parceiros ao redor do mundo, muito Francisco Alves, muito Nelson Cavaquinho, muito Quinteto Armorial, e mesmo os que já tinham ouvido falar em MPB ficavam admirados, porque, na sua imaginação, os brasileiros passavam os dias na praia jogando futebol e ouvindo Bossa Nova, de preferência na voz do Sinatra.

Essa confraternização espetacular acabou três anos depois. Esse foi o tempo que a RIAA, a nefasta Recording Industry Association of America, levou para abater o Napster, num show de maldade, incompreensão e autodestruição poucas vezes igualado. Os processos movidos contra o Napster e usuários aleatoriamente pescados no sistema reuniram alguns dos melhores advogados dos Estados Unidos, e foram acompanhados, como se fossem novelas, por todos os jornalistas e observadores da área. Eu imprimia calhamaços de 200 páginas de argumentação legal que lia avidamente, roendo as unhas, angustiada com a má-fé de alguns argumentos, encantada com o bom senso de outros, maravilhada com a sabedoria de um ou outro (raro) juiz. Detalhe: apesar de inglês não ser a minha primeira língua, eu entendia absolutamente tudo o que estava em discussão, e o que eu não entendia — algumas expressões jurídicas, algumas referências à jurisprudência — encontrava imediatamente na rede.

A batalha do Napster me deu vontade de fazer Direito. A defesa brilhante de pontos de vista opostos me encantou num grau que eu jamais experimentara, porque todos os advogados eram muito bons — especialmente o time que se juntou em torno do Napster, e que entendia exatamente o que significava a falta de fronteiras nacionais oferecida pela internet e a sua importância para a cultura e a liberdade da Humanidade como um todo.

Em suma, era tudo muito bem pensado e, óbvio, muito bem escrito.

Era tudo muito, muito CLARO.

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Me lembrei disso ao longo desta semana, quando me vi no meio de um debate sobre educação provocado pela coluna da última quinta-feira, em que dei voz a uma professora de inglês do estado. Gisele Abreu me escreveu desabafando a frustração que sentira quando, na última semana letiva de 2013, fora apresentada a uma portaria da secretaria de Educação que tornava a sua matéria virtualmente irrelevante, ao tirar-lhe a capacidade de reprovar alunos com mau desempenho.

Pouco depois, recebi um telefonema do secretário de estado de Educação, Wilson Risolia. Batemos um longo papo, em que ele tentou me explicar a situação do ensino, em geral, e a dessa malfadada portaria, em particular. O secretário me impressionou bem. O simples fato de me procurar para expor o ponto de vista da secretaria já depõe a seu favor; além disso, ele não é político, o que para mim é um ponto mais do que positivo, e me transmitiu a sensação de ser um homem sério, bem intencionado e comprometido com a causa da educação.

Ele me garantiu que a portaria que tanto ofendeu Gisele (e mais uma quantidade de professores que lhe fizeram coro e que me escreveram, igualmente indignados e frustrados) não muda nada em relação à situação anterior, e que uma língua estrangeira até pode, sim, reprovar um aluno, desde que essa reprovação seja decidida pelo Conselho de Classe. A mesma informação me foi transmitida por escrito pela assessoria de comunicação da secretaria:

“A nova Portaria 419 não muda nenhuma regra estabelecida em portarias anteriores, ela apenas ratifica a posição do Conselho de Classe em relação à aprovação ou reprovação do aluno.”

Também recebi da coordenadora Mônica Marzano cópia de uma circular enviada às escolas, esclarecendo as dúvidas geradas pela portaria.

Vocês devem estar se perguntando: “Tá, e o que tem tudo isso a ver com o processo do Napster?”

Explico. É que, no meio da discussão, me dei conta de como O Sistema se comunica mal no Brasil. Isso não é exclusividade do estado do Rio de Janeiro; isso é geral. Qualquer documento oficial no país, da mais alta à mais insignificante das autoridades, é infinitamente mais complicado do que deveria ser. Quando se chega à Justiça, então, o distanciamento da linguagem usada e compreendida pelo povo é absoluto.

Voltando à Seeduc, não é possível que uma simples portaria, destinada a ratificar uma situação já existente, não consiga ser compreendida pelo público a que se destina (os professores) ou por pessoas razoavelmente alfabetizadas (como eu me acredito ser); não faz sentido que essa comunicação em tese corriqueira cause tanto mal-estar que precise ser trocada em miúdos, dias depois, por uma circular que, cá entre nós, também não é um primor de clareza.

Vou voltar a esse assunto e, principalmente, vou voltar à questão da educação pública no nosso estado. Já tenho um encontro marcado com o secretário e com membros da sua equipe — que, como ele, também me impressionaram bem. Dizem que é conversando que a gente se entende, e eu quero entender o que está acontecendo nas escolas. Essa tarefa seria muito facilitada, contudo, se a comunicação oficial brasileira, a partir do próprio Ministério da Educação, fosse escrita de forma clara, sem o uso de fórmulas burocráticas arcaicas que induzem mais ao sono do que à circulação de ideias.

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