quinta-feira, dezembro 05, 2013

Poesia das cavernas - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 05/12

A experiência de estar na escuridão desses ambientes só pode ser traduzida em versos


Marcelo Déda, o governador de Sergipe que morreu há poucos dias, gostava de poesia e sol. Fazia e declamava versos de cor. O sol de Aracaju lhe era um bálsamo, como demonstrou ao inaugurar um presídio, há quatro anos. Déda falou, falou, falou e recitou poemas. Já Tarso Genro, então ministro da Justiça, deu-lhe uma bronca.

A inauguração, perto do meio-dia, foi numa periferia poeirenta, sem brisa e sombra que amenizassem o calor do cão. Como os únicos a se regozijarem com a inauguração de uma cadeia seriam os presos, e eles estavam bem trancafiados, o público era de figurões da província: vereadores, deputados, procuradores, delegados, comandantes e desembargadores que comboiavam séquitos de subalternos e cupinchas. No palanque, Déda se referiu a todos eles — eram dezenas — pelo nome, enalteceu-os, fez salamaleques a seus cônjuges. A lista não acabava nunca. Já a peça oratória propriamente dita, de eloquência abrasadora como o ambiente, durou o dobro da eternidade.

Tarso Genro se achegou ao microfone com os cabelos molhados de quem estivesse saindo do mar, caso houvesse um mar fervente por ali. Era suor. Lívido dentro do paletó alagado, parecia que ia ter uma síncope. Profissional, fez cumprimentos protocolares e disse da importância do presídio para esvaziar as delegacias. Mas afirmou que o Brasil melhoraria se os discursos não fossem tão compridos; que o gongorismo dos políticos os afastava do povo; que a falta de objetividade dificultava a solução de problemas. Como foi polido, ninguém estranhou a crítica. Ou então o sol derretera o miolo de todos.

Marcelo Déda conversou com Tarso a respeito do assunto depois. Argumentou que fazer política era também aproximar as pessoas por meio da palavra pública. A tradição nordestina de se referir às pessoas nominalmente, informou, é diferente da gaúcha, na qual o ministro se formara. Divergiram de bom humor e não chegaram a conclusão nenhuma. No avião de volta para Brasília, Tarso Genro comentou a prolixidade da política: “Não tem jeito, é assim. Passo quatro horas por dia ouvindo palavras inúteis”.

Naquele dia, em Aracaju, a incandescência que inviabilizava o pensamento e entorpecia a emoção, a vacuidade da poesia, a ferocidade das cores, o burburinho das gentes e a impossibilidade de intercâmbio entre elas — tudo servia de flagrante para a miséria da política institucional. O oposto a esse inferno, no entanto, existe. O paraíso está nas cavernas e, outra vez, na poesia.

As cavernas ficam no sul de São Paulo, no Alto Ribeira. São mais de 350, a maior concentração da Terra. Elas se formaram no período Cambriano, estão lá há 500 milhões de anos. É formidável o contraste entre a Mata Atlântica original, uma das poucas remanescentes no país, e o reino da escuridão.

Acima do solo, milhares de espécies a se entredevorar, os milhões de odores, os bilhões de muriçocas assassinas. Formas de vida que estouram para todos os lados e não duram nada. O amálgama hostil e disforme da selva, a umidade pegajosa, o abafamento. A água violenta que despenca em cachoeiras ribombantes.

Metros abaixo, rochas calcárias antiquíssimas que se dissolvem solenemente em tênues riachos subterrâneos. Pingos vagarosos que caem como música hipnótica, formando estalactites e estalagmites. O odor uniforme dos morcegos. Nenhuma planta, frio, escuridão, silêncio. Não a morte, contudo.

Desce-se devagar numa caverna. Com capacete, lanterna e galochas. Depois de algumas centenas de metros percorrendo túneis, que obrigam o abandono da postura ereta habitual, o atarefado mundo fica para trás de vez. A experiência não é inusitada, parece não apenas ter sido vivida como apreciada. Os barulhos remotos, as formas abauladas da rocha calcária, a luz líquida, o aconchego de ter a paisagem ao alcance da mão e o ruído calmo das correntes de água lembram os meses intrauterinos — o tempo no qual éramos, mas o mundo não, e o corpo da mãe nos envolvia como a pedra calcária. O ser ainda não era criatura.

No fundo da caverna, o guia falou para apagarmos as lanternas e ficarmos quietos. Aí se vê o que nunca se viu sequer em sonho: a escuridão sem resto de luz de sol, lâmpada e lua; de céu ou cidade. O preto total da morte. E aos poucos se percebe que os rumores da natureza são os do corpo: o sopro da respiração, o bater do coração, os gestos surdos de um homem das cavernas.

A experiência só pode ser traduzida em poesia, invenção que Marcelo Déda lembrou até para comemorar o recolhimento de seus semelhantes a uma caverna construída pelo homem, o presídio. Ele apreciaria os versos de Auden:

Quando tento imaginar um amor sem erro

Ou a vida que virá, o que ouço é o murmúrio

De águas subterrâneas, o que vejo é uma paisagem calcária.

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