O Estado de S.Paulo - 17/12
Há uma arrogância sem precedentes no gesto do condenado João Paulo Cunha (PT-SP), alicerce do mensalão, ao acusar o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, de fazer "justiça seletiva" e de "fazer justiça apenas quando lhe interessa". A memória das pessoas é curta e por isso se torna importante lembrar que esse deputado federal fez mau uso do cargo que ocupava, envolveu-se até a raiz dos cabelos no avanço em dinheiro público e acabou condenado no processo do mensalão por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro.
Poucos conhecem o significado desses crimes. Corrupção passiva vem a ser o ato de solicitar, receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida ou aceitar promessa de vantagem. Nesses casos, o julgador deve aferir a vontade livre e consciente do réu de praticar o ato (o dolo), previsto como crime no artigo 317 do Código Penal. Se a autoria e a materialidade estão presentes, não pode o juiz deixar de fixar a penalidade - e isso foi o que ocorreu no caso de João Paulo Cunha e outros condenados do mensalão.
Ao contrário do que ele diz em livro que pretende publicar, não houve "condenação contra as provas", mas tão somente a conclusão jurídica, essencialmente jurídica, de que cometera os crimes de corrupção passiva, concussão e lavagem de dinheiro. No caso desse petista, como o julgamento, transmitido pelas televisões para todo o País, ocorreu no ano passado, talvez nem todos se lembrem de ter ficado perfeitamente esclarecido, exemplarmente demonstrado, que ele não conseguiu demonstrar de forma convincente como determinadas importâncias em dinheiro suspeito haviam caído em sua conta bancária. Não conseguiu, também, demonstrar que estava fora do grupo que se divertiu pra valer com o dinheiro do mensalão (dinheiro nosso, sempre é bom lembrar).
O que agora suscita, absolvendo a si próprio, é de estarrecer. Ele alega que o brasileiro talvez mais admirado do presente (Joaquim Barbosa) cometeu o equívoco de "usar a justiça somente quando lhe interessa", como se esse ministro do Supremo, indicado para o cargo pelo Partido dos Trabalhadores, alimentasse o propósito pessoal de condená-lo. Por esse julgamento, unicamente técnico, de alguém que tão somente cumpriu o dever de juiz, Joaquim Barbosa é agora acusado de "disputar a opinião pública" e "submeter seus atos ao julgamento popular".
Percebe-se que o parlamentar, nesta antevéspera de ir para a cadeia e de ter o seu mandato cassado, parece pretender que plateias de políticos filiados ao Partido dos Trabalhadores, e não o Supremo Tribunal Federal, tivessem promovido o julgamento. Na ótica dessa agremiação partidária, seriam todos absolvidos, o julgamento teria sido justo e a farra com o nosso dinheiro continuaria até hoje (como parece continuar, aliás).
Sem nenhuma dúvida, fica a impressão de que o condenado se sente como de fosse o centro do universo, e não um criminoso cuja conduta já foi julgada e condenada. Além de corrupção passiva, crime cuja prática mancha qualquer carreira, ele foi igualmente condenado por peculato.
O que vem a ser isso? O crime de peculato é atribuído a funcionário público que se apropria de dinheiro, valor ou outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
A pena de 2 a 12 anos, além de multa, é aplicável também quando, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a condição de funcionário. Ora, o petista João Paulo Cunha foi presidente da Câmara dos Deputados de 2003 a 2005, período do governo Lula em que ganhou forma o mensalão. Eram evidentes a sua influência e as facilidades para obter vantagens.
A disposição referente a peculato contida no artigo 312 do Código Penal, delineada pelo legislador da época (1940), pareceu destinar-se a punir hipóteses como a do mensalão. No caso, provadas a autoria e a materialidade dos dois delitos (corrupção passiva e peculato), nem o melhor advogado do planeta conseguiria livrar o acusado da condenação, fixada em 9 anos e 4 meses, significando que cumprirá pena em regime fechado. Isso talvez explique o poeirão que tenta levantar para encobrir o que de fato fez e que merece repulsa de todos os que são favoráveis ao prevalecimento da lei e do Direito.
Um terceiro delito - lavagem de dinheiro - foi atribuído a João Paulo Cunha e reconhecido por seis dos 11 julgadores. Esse crime é típico do "colarinho branco", ou seja, caracteriza-se quando dinheiro sujo, de má origem, passa por processo de limpeza graças a espertezas e expedientes ardilosos em que alguns criminosos são especialistas. Em razão de cinco dos juízes terem expressado pensamento pela não ocorrência desse crime, o acusado valeu-se da legislação do Supremo Tribunal que permite embargos infringentes, os quais estão em curso e por isso ficou suspenso o início do cumprimento da pena do deputado. Quando terminar esse julgamento, contudo, mantida ou não a condenação referente à lavagem de dinheiro, terá início o cumprimento da decisão judicial, com o encarceramento de João Paulo Cunha.
O sistema processual brasileiro está adstrito ao devido processo legal e essa é a razão pela qual os processos demoram para chegar ao desfecho. No caso em especial do mensalão e seus condenados, o devido processo legal, previsto pela Constituição federal, ganhou mais apropriadamente a feição de interminável processo legal, dada a evidência de sua eternização.
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