domingo, dezembro 15, 2013

Olé! - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O ESTADÃO - 15/12

Las Ventas, em Madrid, é a “plaza de toros” mais importante da Espanha. Estivemos lá há alguns anos, na companhia do fantasma do Goya. A série de gravuras intitulada Tauromarquia do mestre foi inspirada nas “corridas” de touros. Ninguém melhor do que ele para guiar nossos passos pela arena vazia. Goya dizia que tinha sido toureiro na juventude, mas não existe nenhuma evidência disto. O ponto de vista das suas gravuras de touradas é sempre no chão.

O artista está dentro da arena, talvez para comparar a destreza da sua arte com a dos toureiros. As cenas são de ação, mas ao mesmo tempo têm uma certa solenidade estática, uma consciência de que significam mais do que mostram. Touros e toureiros ocupam um espaço despojado, distante de qualquer realidade reconhecível, como símbolos sobre um palco nu.

Símbolos de quê? Velha questão. O touro representaria a natureza bruta, o que não tem regras, o instinto, em contraste com os movimentos ritualizados e a razão aplicada do toureiro. Como o resultado deste encontro de opostos é sempre a morte – do touro certamente, do toureiro possivelmente – ele tem um caráter de definição final, uma forma extrema de despojamento. Num rude esporte popular, repudiado pelas pessoas sensíveis do seu tempo e das suas relações, Goya retratava uma reincidente dramatização da divisão da alma espanhola entre emoção e controle, paixão e forma. Ou não.

Ernest Hemingway lançou seu livro sobre touradas, Death in the Afternoon, em 1932, antes da Guerra Civil espanhola e da construção de Las Ventas e não muito depois do governo ter decretado que os cavalos usados pelos picadores fossem protegidos das corneadas do touro, para evitar o que o público não espanhol considerava a parte mais repugnante do espetáculo, as vísceras dos cavalos despejadas na arena. Os cavalos não morriam mais, mas o sanguinário Hemingway não concordava muito com estes pruridos.

No seu livro, ele compara o gosto pela tourada com o gosto pelo vinho. Para o iniciante, o que atrai na tourada é o pitoresco e o supérfluo, o que equivale a uma preferência por vinhos suaves. Só com o tempo a pessoa começa a distinguir o essencial da tourada do meramente pictórico, assim como só com tempo se adquire o paladar para um denso e profundo “grand cru”. O essencial da tourada é a tragédia ritualizada, e para que esta fosse completa as vísceras na areia eram necessárias. Hemingway comparava o horror dos turistas com os cavalos eviscerados a uma renitente queda por frisantes menores.

Na praça em frente a Las Ventas há uma estátua curiosa, de um toureiro reverenciando Alexander Fleming, o inventor da penicilina. Milhares de toureiros devem a sua vida a Fleming, pois antes da penicilina, a maior causa de morte entre eles não era a chifrada do touro, mas as bactérias introduzidas no organismo pelo chifre. Eu tinha chegado a Madri literalmente tomado por uma reação alérgica a um antibiótico receitado para a sinusite. Troquei toda a minha pele. Saí da Espanha outro homem, pelo menos na superfície.

Tudo porque não notei que o antibiótico ingerido continha a invenção do Dr. Fleming, à qual sou alérgico. Só o respeito a tantas vidas poupadas me impediu de sair correndo e dar um pontapé na estátua.

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