segunda-feira, novembro 11, 2013

Lobby por lobby - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


Eles vão ficar conosco até o fim da nossa vida. Começaram a chegar nas últimas décadas do século XX, trazendo em sua pregação uma ideia simples: estava mais do que na hora, diziam, de proteger o homem de si próprio, pois ele não vinha se mostrando capaz, sozinho, de aproveitar corretamente os frutos do maior período de progresso contínuo jamais registrado na história da humanidade. 
Deixado por sua conta, iria gastar mal o que havia ganhado, cair no desperdício e cometer todos os pecados que as crianças decoram hoje já no primeiro ano do curso primário.
 É possível que as coisas tivessem ido por aí mesmo, levando-se em conta a invencível capacidade do homem de transformar em problema a maioria dos sucessos que obtém. Mas o fato é que os governos e seus funcionários, reforçados por militantes de todos os tipos de causas particulares, foram recebendo cada vez mais a tarefa de decretar como os cidadãos devem se comportar, para o seu próprio bem — e de decidir o que é certo, suficiente, virtuoso e por aí afora. Desde então o mundo não parou mais de regular a si próprio, e hoje já não existe nenhuma perspectiva de que os reguladores venham a dar sua tarefa por terminada: quando se pensa que já regularam tudo o que podia ser regulado nesta vida. aparecem com alguma coisa em que ninguém havia pensado antes, e vêm com regras novas em folha para determinar o que o cidadão pode ou não fazer. De fato, estarão aí para sempre — mesmo porque a soma das suas atividades já forma hoje todo um mundo com vida própria, que dá sustento, trabalho e benefícios materiais a centenas de milhares de pessoas dentro ou fora dos governos, ou mais que isso, movimenta bilhões de dólares, influi nas decisões públicas e privadas de investimento e exerce, em geral, um poder que não lhe foi dado por nenhum instrumento democrático de uso comum. Tomaram-se um sistema com interesses a defender. Não vão parar.

As demonstrações práticas do que é descrito aí acima acontecem o tempo todo. em tudo o que se possa imaginar, e mesmo naquilo que ninguém imagina — as descargas de privadas, por exemplo, para ficar no caso mais recente, e especialmente cômico, de obsessão por regular qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, que passe pela cabeça de um regulador aplicado. Sinceramente: dá para pensar em algo menos sujeito à intromissão da autoridade pública do que o ato de ir ao banheiro? Pois os técnicos da Comunidade Europeia acham que sim, perfeitamente — a visita ao toalete não é coisa tão privada como se pensa, decidiram eles, e não pode mais permanecer nessa situação de liberalismo selvagem em que se encontra hoje. Resultado: após três anos inteiros de labor numa pesquisa que consumiu 100000 euros (sorte dos europeus; não têm ideia de quanto lhes custaria isso num orçamento padrão PAC), rendeu 120 páginas de sabedoria e cobriu os 28 países da organização, eles decidiram neste início de novembro que, a partir de agora, todas as privadas da Europa deverão ter descargas geradas em caixas com 5 litros de água — nem uma gota a mais. Os mictórios terão direito a 1 litro. Serão permitidas meias-descargas, com 3 litros, e fim de conversa — tudo isso, sustentam os técnicos, é fruto de médias aritméticas, cálculos de distância entre as bordas dos vasos e de estudo dos “hábitos pessoais” dos usuários. Quais seriam? A comissão responsável pelo chamado euroflush preferiu ser discreta a respeito — limitando-se a observações menos arriscadas, como a de que a Inglaterra é o país que mais consome água em suas privadas (6 ou mais litros por descarga) ou que só a ducha, no consumo doméstico, gasta mais que uma boa puxada de água no vaso sanitário.

O objetivo de todo esse esforço é salvar a Europa e sua gente da “falta de recursos hídricos”. O estudo indica, alarmado, que há no momento 400 milhões de privadas e mictórios na Comunidade Europeia — algo que, pelo bom-senso, parece ser coisa muito boa, pois mostra que todo indivíduo tem acesso ao mais elementar dos recursos sanitários. Parece, mas não é. Segundo a autoridade pública, isso já é privada demais, e privada tem de ser utilizada com moderação. Pode, uma coisa dessas? Não só pode — é a regra, hoje em dia. Regulamentos do governo para isso ou aquilo sempre houve, desde que a Revolução Industrial começou a gerar efeitos, mas estamos entrando em outra dimensão. Uma das atividades que mais crescem no mundo de hoje é a que se propõe a controlar as atividades dos outros — um lobby tão forte quanto qualquer dos que existem e, por isso mesmo, tão perturbador como todos eles.

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