segunda-feira, novembro 25, 2013

A cor do SUS - LIGIA BAHIA

O GLOBO - 25/11

Basta dizer com convicção que recurso público deveria ser usado para atender o público para ouvir a advertência: “Está querendo nivelar por baixo.” O sentido unívoco da chamada à conservação da ordem é o de que a coexistência entre a alta qualidade e a seleção dos que podem acessá-la é inevitável. É como se o progresso, a excelência, fossem devidos a conquistas pessoais e dedicação dos bons, e cobrassem o sacrifício dos médios e ruins. A transposição desse darwinismo social para a saúde justifica-se pela ideia de que de pouquinho em pouquinho os pobres sobem degraus de acesso a serviços de saúde progressivamente melhores. Mas o padrão assistencial dos ricos, que fica no topo da escada e a todos enche de orgulho, mesmo àqueles que nem em sonho poderão utilizá-lo, não é estático, não fica parado à espera dos passos rápidos ou lentos de melhoria das condições gerais de consumo.

O modelo 3 Cs (cartão de crédito, computador e carro) e outros bens e serviços não vale para a saúde. Sintomas e doenças podem ser agravados pela restrição de assistência ou pelo atendimento medíocre ou ruim. A alta qualidade para poucos combinada com a inferiorização ou invisibilização de grupos humanos trava avanços sociais. Os indígenas, pardos e negros que representam a maioria da população brasileira adoecem mais e morrem antes dos brancos. No entanto, a cor da minoria predomina nos considerados melhores estabelecimentos de saúde, que, não por acaso, são de direito ou de fato privados. Obviamente, o fenômeno não começa nem acaba em hospitais ou clínicas. Bairros, escolas, restaurantes e bares excelentes, nos quais inexiste placa vedando a entrada de todo e qualquer brasileiro, também são monocromáticos. A objeção às inespecificidades dos males do racismo é que a importância do reconhecimento de nossa humanidade comum e de diferenças culturais é condição essencial para conseguir viver a vida agora, já.

Discriminação, preconceito e estigmas são causas objetivas de adoecimento e morte. A mortalidade infantil de negros caiu drasticamente no sul rural após a aprovação da legislação sobre os direitos civis nos EUA em 1964. Mas as desigualdades na saúde entre brancos e negros americanos retornaram aos níveis anteriores nos anos 1980, com as políticas estigmatizantes de aprisionamento e guerra contra as drogas. Estudos recentes da Organização Mundial de Saúde evidenciaram que os diferenciais de depressão entre mulheres e homens são menores em países onde existem políticas de controle dos efeitos deletérios da ideologia de gênero.

Em 2011, quando foi instituído o Dia da Consciência Negra, o Brasil foi condenado pela Organização das Nações Unidas (ONU) por violar direitos humanos de grávidas. O fato que gerou a decisão foi a morte de Alyne Silva Pimentel, de 28 anos, negra, moradora da Baixada Fluminense, que faleceu em 2002, no sexto mês de gestação, por falta de atendimento apropriado pela rede pública. O tempo passou e as desigualdades na saúde não desapareceram. Recentemente, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial apresentou uma síntese das desvantagens dos negros em relação à saúde. Existe simultaneamente déficit e sobreuso de ações e serviços de saúde pela população negra (mais de 40% das negras nunca realizaram mamografia e 70% dos usuários do SUS são negros). A divulgação de denúncias e estatísticas sobre as desigualdades raciais é um passo essencial para reduzir e superar disparidades não econômicas na saúde. O que ainda não ficou claro no idioma governamental é como continuar a caminhada.

As concepções que consideram que somos iguais apesar das diferenças ou diferentes originam políticas públicas de saúde distintas. A diferença entre as tradições democráticas e liberais não é semântica. Um SUS exclusivamente ou predominantemente negro é uma solução ou um sintoma de discriminação? Os valores culturais que inferiorizam e impedem a paridade de participação na sociedade tais como leis matrimoniais que excluem a união entre pessoas do mesmo sexo, a rotulação de mães solteiras como irresponsáveis e associação entre raça negra e criminalidade afetam a saúde de todos.

Elizabeth Travassos, branca, doutora em antropologia, moradora de um bairro de classe média no Rio de Janeiro morreu em outubro de 2013 em decorrência de sequelas deixadas por uma simples cirurgia, para retirar um nódulo do útero, realizada em um hospital privado. As circunstâncias das mortes de Alyne e Elizabeth não são comparáveis. Entretanto, em ambos os casos, como em tantos outros, foram fornecidas informações imprecisas às famílias e houve uma demora injustificável para transferi-las para unidades de saúde mais bem equipadas. Um não está situado em uma escala evolutiva acima do outro. Uma hipótese que não pode ser descartada é que a segregação reduz a qualidade do sistema de saúde tanto de seu componente público quanto privado. Portanto, a identidade singular — que nega a complexidade das interseções culturais e a ausência de validade biológica da noção de diversidade racial — não tem sido tomada como parâmetro à organização de sistemas de saúde. O modelo dos EUA de escolas e universidades para negros não foi transposto a outras políticas sociais.

As tentativas de enfrentar a negação da humanidade comum que justificou a escravidão e se renova em novos formatos de apartheid na atenção à saúde requerem a afirmação da cidadania universal e necessidades especificas. O reconhecimento das necessidades comuns e específicas de saúde não é cortesia, privilégio ou benevolência. Não é razoável que os hospitais assassinem seus pacientes, sejam os mais ou menos abastados, e nem que o confinamento de conhecidos ou desconhecidos em um regime prisional ameace a integridade física de doentes graves. A saúde requer políticas baseadas na construção de uma humanidade compartilhada porque as pessoas não escolhem e tampouco são escolhidas, de modo meritocrático, para ficar doente, sofrer, sentir dor.

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