domingo, novembro 24, 2013

A arte de andar de bicicleta nas calçadas do Rio - TONY BELLOTTO

O GLOBO - 24/11

As decisões começam no momento em que o ciclista sai de casa e a interrogação se impõe: rua ou calçada?


Solvitur ambulando

No conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, de Rubem Fonseca, Augusto, o andarilho, cujo nome verdadeiro é Epifânio, anda nas ruas da cidade o dia inteiro e parte da noite. Ele acredita que ao caminhar pensa melhor e encontra soluções para os problemas. “Solvitur ambulando”, diz para seus botões.

Também adepto de solvitur ambulando — “resolver caminhando” em latim —, ao contrário do personagem de Rubem Fonseca, prefiro ambular de bicicleta.

Amsterdã

O Rio é uma cidade bem servida de ciclovias. Tem a maior malha cicloviária do Brasil e a segunda da América Latina, perdendo apenas para Bogotá. Isso se deve a iniciativas de políticos e ambientalistas como Fernando Gabeira, Carlos Minc e Alfredo Sirkis, entre outros, que desde a década de 1980 se preocupam com a emaranhada problemática dos transportes nos grandes centros urbanos. Mas o Brasil e a América Latina ainda engatinham na implementação de ciclovias em suas metrópoles, assim como nas campanhas incentivadoras e informativas dos benefícios do ciclismo. Compare-se o Rio a Amsterdã, cidade com a maior malha cicloviária do mundo, e se terá um vislumbre de quanto ainda nos falta evoluir nesse sentido.

Veleidade

Muito do desprezo que alguns de nossos administradores públicos demonstram por ciclovias vem da ideia cada vez mais insustentável de que andar de bicicleta é uma veleidade de ambientalistas e atividade ligada apenas ao esporte e ao lazer de fim de semana de burgueses entediados. Embora existam problemas mais prementes — e a má qualidade do transporte público seja uma das principais reclamações da população —, não se pode esquecer que o ciclismo é uma alternativa eficiente ao caos ambiental gerado pelo acúmulo de automóveis que se arrastam em nossas ruas movidos a combustível fóssil, aquele que, além de poluir a atmosfera, um dia vai acabar.

O Grande Vazio

David Byrne — músico, compositor, diretor de cinema, escritor e emérito ciclista — narra no livro “Diários de bicicleta” suas deambulações de bicicleta pelas cidades do mundo que visita profissionalmente ou como turista. Ele defende a ideia de que a relação de um habitante com a cidade em que vive se intensifica quando deixa de andar de carro e passa a fazer seus trajetos rotineiros a pé ou de bicicleta. Deslocar-se mais lentamente permite ao cidadão observar o que se passa ao redor e interagir com situações das quais nem se daria conta se estivesse dentro de um carro. Isso sem falar no enorme espaço estéril necessário para abrigar tantos automóveis, os desolados estacionamentos que à noite compõem um monumento silencioso ao Grande Vazio.

Agruras de um ciclista

As decisões começam no momento em que o ciclista sai de casa e a interrogação se impõe: rua ou calçada?

A dúvida é mais complexa do que parece. Em tese — e nos termos da lei — o ciclista deve optar por andar na rua quando não há ciclovias. O problema é que as estatísticas e os jornais vivem nos assombrando com notícias de ciclistas que são frequentemente atropelados nas ruas das cidades brasileiras. Há casos trágicos e verdadeiramente bizarros, como o do ciclista em São Paulo que teve seu braço decepado por um motorista que, além de não lhe ter prestado socorro, fugiu e tentou se livrar do braço comprometedor atirando-o num córrego distante.

Por medo de ser atropelado, em algumas situações decido por andar de bicicleta na calçada. E cada vez que vejo um ônibus passar na rua tenho certeza de que fiz a opção certa. Muitos dos motoristas de ônibus do Rio de Janeiro parecem acometidos de uma forma agressiva de psicopatia urbana.

Chagall

Quando o ciclista opta por andar na calçada ele deixa de ser vítima e passa a ser ameaça. Nessa situação é preciso atenção redobrada e cidadania a toda prova. Muitas vezes é necessário saltar da bicicleta e empurrá-la pacientemente. Crianças, idosos, poetas e cachorros costumam caminhar distraídos, e é preciso respeitá-los, como a todos os pedestres, os verdadeiros donos do pedaço. O respeito é extensivo aos bêbados e mendigos que dormem sobre as pedras portuguesas e sonham com colchões macios e lençóis brancos num mundo em que bicicletas e seres humanos flutuam no ar como numa pintura de Chagall.

Epígrafe

Em 1862, Joaquim Manuel de Macedo, autor de “A moreninha”, publicou “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”, reunião de crônicas em que relata suas andanças e impressões da cidade. Foi daí que Rubem Fonseca extraiu a perturbadora epígrafe de seu conto: Em uma palavra, a desmoralização era geral. Clero, nobreza e povo estavam todos pervertidos.

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