domingo, outubro 06, 2013

O Estado no pico da crise - GAUDÊNCIO TORQUATO

O ESTADO DE S. PAULO - 06/10

A ciência política ensina que Estado e sociedade formam um todo indivisível. A prática mostra que, ao menos entre nós, Estado e sociedade compõem uma dualidade em escancarado desnível. Nosso corpo social anda a passos mais avançados que o esqueleto do Estado.

Basta conferir os pulmões cheios de oxigênio de grupos que representam o espectro profissional ocupando ruas, acampando diante das Casas do poder, em Brasília e nos Estados, entrando em choque com aparatos policiais, expandindo uma locução focada na qualidade dos serviços públicos e na melhoria de condições de vida das comunidades. A visão é clara: a sociedade empunha aríetes para furar os bloqueios das fortalezas do Estado. Outra imagem que transparece é a de forças centrípetas saindo das margens para fustigar as forças centrífugas, simbolizadas pelos Poderes nas três instâncias federativas - União, Estados e municípios. Não se pense que a intenção é destruir os organismos que tributam, legislam e julgam, mas exigir deles mais eficiência no cumprimento de suas tarefas. Desse cenário conflituoso emerge a ideia de que a sociedade nunca esteve tão ativa, enquanto o Estado nunca foi tão reativo, lerdo, sem rumo.

Seja qual for o espaço da administração, as mostras de ineficiência e incúria se multiplicam. Após muito planejamento, o governo abriu leilão para a concessão da rodovia federal BR-262, um dos principais corredores de transporte de carga do País, num trecho de 375 km que passa por 22 municípios. A expectativa era enorme. O leilão, um fiasco para o Executivo. Ninguém se interessou, o que: denota curto-circuito num dos; programas-chave do governo. "Não há Judiciário mais confuso que o nosso", vem de dizer o presidente da Corte Suprema, ministro Joaquim Barbosa. Péssimo conceito. A pendenga entre o Legislativo e o Executivo é um continuum de tensões, não apenas em decorrência de medidas provisórias que trancam pautas do Congresso, mas por causa da índole do nosso presidencialismo, sempre atento ao poder imperial, com o qual mantém sob rédea curta o conjunto parlamentar. Nas instâncias estaduais e municipais, curvas e buracos desorganizam as avenidas das administrações, adensando a insatisfação social. A conclusão é inevitável: o Estado brasileiro atinge o pico da montanha de uma crise que se arrasta há décadas. Ainda está em pé por causa de estacas e ferragens que, aqui e ali, se colocam, algumas de maneira improvisada, para sustentar os barrancos.

O que fazer para que o Estado acompanhe o andar ligeiro da sociedade? Resposta na ponta da língua: reformá-lo. Ora, se esse verbo é o mais acessado do dicionário de nossas utopias, é também o mais distante de nossa realidade. A razão é óbvia: reformar, como lembra Samuel Huntington, é mudar valores, padrões tradicionais, expandir a educação, racionalizar estruturas de autoridade, criar organizações funcionalmente específicas, substituir critérios subjetivos por elementos de desempenho e promover distribuição mais equitativa dos recursos materiais e simbólicos. Ou ainda, como dizia Maquiavel, "nada mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas". No nosso caso, as barreiras culturais, formadas lá atrás com a argamassa do patrimonialismo e seus filhotes, o clientelismo e o nepotismo, formam diques quase insuperáveis no oceano da reforma do Estado. Reformar o Estado não é passar massa de reboco nos andares dos edifícios governativos, como se tem feito, aqui e ali, em momentos de tensão. Abriga tarefas hercúleas nos três Poderes que integram a estrutura de governo e envolvem questões estratégicas, definições que mudam até o modiis operandi do regime, rotinas, práticas e costumes dos entes administrativos Na esfera estratégica, um dos primeiros movimentos é na direção das funções do Estado, com a distinção entre suas atividades exclusivas (legislar, regular, julgar, policiar, fiscalizar, definir políticas, fomentar), os braços sociais e a produção de bens e serviços, visando a buscar novos modelos de desenvolvimento. A título de ilustração, essa questão não está clara na atual administração, pois o conceito de privatização é demonizado, apesar de o programa de concessões apontar para uma tomada de posição privatista repudiada pelo petismo. Não se trata, como ideólogos radicais enxergam, de defender o Estado mínimo ou combater o Estado máximo, mas fortalecê-lo para que consiga aperfeiçoar sua ação reguladora, a par de qualificar serviços e políticas sociais. A modelagem de cunho social-liberal é, seguramente, a mais adequada para gerar eficácia nas ações estatais e estimular a competição no campo privado. (O peso do conceito liberal, eis o busílis.)

Entre as engrenagens capazes de conferir maior velocidade ao motor do Estado, algumas são bem conhecidas. A meritocracia, por exemplo. Por que não implantar, de cima para baixo, a política do mérito, exigindo quadros profissionais qualificados, adequados às funções, treinados nas habilidades gerenciais? O atendimento político, por sua vez, deveria restringir-se às áreas específicas e, caso se levante o argumento da preservação do presidencialismo de coalizão, os partidos deveriam indicar perfis técnicos condizentes com os cargos. A gestão passaria por um banho de capacitação em todas as instâncias. Ao servidor público, mais valorizado, seria propiciada motivação profissional, a partir de remuneração condizente com o mercado de trabalho. O excesso burocrático seria contido, evitando-se a escadaria dos papéis e o retardamento das ações e decisões. Na frente da Previdência, urge consolidar uma política voltada para tampar os buracos do sistema, de forma a equilibrar as contas do Estado.

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