sábado, outubro 19, 2013

Manifesto septuagenário - CACÁ DIEGUES

O GLOBO - 19/10

Não sou mais obrigado pela lei a votar, não preciso escolher em quem votar e meu voto não fará falta a ninguém. Isso talvez sossegue minha angústia, minha frustração



Seja qual for a sua idade, é difícil viver, é difícil tomar um rumo na vida, é difícil distinguir o certo do errado, é difícil escolher. Quem sabe, o herói emergente do século 21 será aquele que não escolhe, que não tem que escolher. Deixe eu ver se me explico direito.

Durante a minha juventude e parte da maturidade, fui sempre um neomarxista místico, acreditava que uma boa revolução seria saneadora da maldade humana. Das de direita, quase sempre golpes de estado, não se podia esperar senão opressão política e regressão moral, delas nunca esperei nada mesmo. Se ainda existe a dualidade inaugurada na Revolução Francesa, ser de direita é ignorar a mente, o coração e o estômago dos outros. Mas, ao longo do tempo, as de esquerda também acabaram me decepcionando.

As modernas revoluções progressistas logo cedo iludiram seus preceitos e foram sucedidas por noites sombrias de terror. Foi assim com Robespierre, Stalin, Mao Tsé Tung, Fidel Castro. Também não gosto da hipocrisia da revolução americana, que, apesar de sua grandeza, varreu para baixo do tapete a questão fundamental da escravidão.

Não me tornei inimigo do que fui. Tenho orgulho da fé que tive naquelas utopias, assim como respeito a generosidade dos que ainda hoje as cultivam. Mas não acredito mais que o mundo marcha necessariamente numa direção inexorável, como um trem preso aos trilhos. O mundo é um maloqueiro drogado, a ziguezaguear trôpego por aí. Como disse um político brasileiro, a gente vive esperando pelo inevitável e o que nos chega é sempre o inesperado.

Tanto que, depois de tanto sonho, ainda vivemos, nessa aurora do século 21, os rancores dos genocídios cometidos no passado, a estupidez das guerras religiosas, a selvageria do capitalismo financeiro, a irracionalidade de todos os tiranos, o fracasso de primaveras sem flores.

Os pequenos sentimentos também podem mudar o mundo. Podemos formular teorias enciclopédicas, escrever compêndios de cálculos irrefutáveis, mas são sempre insights que iniciam a aventura do novo na história da humanidade. Peter Higgs, cientista inglês que não usa máquina de calcular, celular ou computador, foi o homem que propôs por suposição a existência do bóson que levou seu nome, a chamada “partícula de Deus”, que pode mudar tudo o que sabemos sobre o universo e sobre nós mesmos. Primeiro veio a luz, depois o que ela iluminava.

Hoje, os jovens de todo o mundo se importam mais com comportamento do que com política, são mais capazes de aderir a uma revolução em nome da felicidade, do que a outra por uma forma qualquer de poder. Claro, às vezes se equivocam, o capitalismo é diabólico, oferece-nos a satisfação de nossos desejos em troca do sequestro de nossa vontade. Trocamos um Apple qualquer de última geração ou um cheeseburguer do McDonald’s, pela intocabilidade de Wall Street ou pela segurança do estado vigente.

Me solidarizo com o direito à manifestação dos professores, estou com eles e não abro, a educação é uma questão crucial no Brasil de sempre. Assim como aplaudo o sindicato deles por promover uma passeata de milhares de pessoas indignadas, mas em paz, desautorizando a violência surgida depois da manifestação. Uma arma que fere não tem identidade, ela surte o mesmo efeito quando manipulada pela boçalidade dos milicianos em defesa de políticos que não merecem respeito ou pelo despreparo cívico de uma polícia que não nos protege. As vítimas somos sempre nós.

Distante do povo, o anarquismo é um barato de rico. Quando vejo um black bloc agir, meu coração se parte ao meio. Odeio aquele quebra-quebra que vai se tornando cotidiano e banal, aquela destruição de equipamentos públicos que só prejudica o cidadão que não tem nada a ver com isso (os bancos não vivem de caixas eletrônicos, não é dali que tomam a riqueza que os faz poderosos, eles só servem ao pequeno correntista de tostões). Mas reconheço sua generosidade juvenil, sua pressa em consertar o mundo, nem que seja na porrada.

Os jovens dos anos 1970 que pegaram em armas contra a ditadura militar se pareciam com eles. Mas, como o mundo não é justo, não foram os guerrilheiros que lutaram contra a opressão, às vezes oferecendo a vida em nome de um sonho, que acabaram com a ditadura. Quem acabou com ela foi a habilidade de políticos democratas, ainda que conservadores, como Ulisses, Tancredo, Montoro, Teotônio, aliados à luta legalista de Lula e dos sindicatos do ABC. A vida é cruel. Nem sempre a pureza romântica está do lado certo, nem sempre o lado certo é o certo. E isso nos castiga a alma.

Tenho mais de 70 anos, não sou mais obrigado pela lei a votar, não preciso escolher em quem votar e meu voto não fará falta a ninguém. Isso talvez sossegue minha angústia, minha frustração de achar que é tudo meio parecido e o que não é meio parecido não é razoável, não convém ao bem-estar de todos. Está difícil cultivar uma democracia verdadeira, em que o outro vale o mesmo que eu mesmo.

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