domingo, outubro 20, 2013

As novas concessões ferroviárias - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 20/10

Há inúmeros problemas no marco regulatório e na estrutura de financiamento para projeto deslanchar


Em agosto de 2012, o governo federal lançou um ambicioso e necessário pacote de investimento em infraestrutura, batizado de Programa de Investimento em Logística (PIL). Um dos objetivos do PIL é licitar a concessão para construção de 11 mil quilômetros de ferrovias, com investimentos estimados em R$ 100 bilhões.

O PIL representa um saudável processo de amadurecimento do grupo político à frente do Executivo federal nos últimos dez anos com relação à participação do setor privado na oferta de serviços de logística em geral.

Ainda assim, penso que as concessões ferroviárias não vão deslanchar. Há inúmeros problemas no desenho do marco regulatório e na estrutura de financiamento.

O modelo adotado será de separação vertical. Uma empresa construirá a estrada. A empresa pública Valec comprará a totalidade dos fretes e os alugará para os operadores de transporte de carga por modal ferroviário, por meio de leilão. Há separação vertical entre a construção e a manutenção do leito ferroviário, de um lado, e a operação dos trens, do outro.

A enorme vantagem da separação vertical é que ela induz competição no uso do leito ferroviário. A separação vertical funciona bem, por exemplo, na transmissão de energia elétrica: a empresa que opera a rede de distribuição não é a empresa geradora de energia. Por meio de regras estabelecidas em lei, qualquer empresa geradora pode ofertar para o sistema empregando a rede de distribuição, induzindo, portanto, competição na geração.

Em ferrovias, a experiência internacional é que separação vertical não funciona para transporte de carga, com alta intensidade de uso da linha férrea. Os resultados são menos claros para transporte de passageiros, quando há média intensidade.

O problema é que existem enormes economias de escopo entre as duas atividades. Em português simples, trem destrói trilho, e trilho destrói trem. Se a operação for conjunta, o operador escolherá as tecnologias e os detalhes de uso das tecnologias de forma a tornar mínimos os custos conjuntos. Na operação verticalmente separada, é muito mais complicado e caro o processo de entendimento entre as partes para que esses custos da interação entre o trem e a linha sejam minimizados.

Também parece-me que a forma de financiamento da construção das ferrovias não funcionará.

Para garantir a modicidade tarifária e, simultaneamente, remunerar o investidor, parcela de até 80% do capital que será investido na construção será emprestada pelo BNDES, que cobrará a taxa de juros de longo prazo (TJLP), fortemente subsidiada. Há dois problemas com esta solução.

O primeiro é que não há justificativa para o Tesouro subsidiar transporte de mercadorias. Transportar soja, por exemplo, é diferente de construir metrô nas grandes metrópoles. Quando alguém vai ao trabalho empregando transporte coletivo, colabora para reduzir o congestionamento, além de não poluir o ar. Não há os mesmos efeitos externos positivos no frete de bens primários. Justifica-se a concessão, mas não o subsídio. No limite, o contribuinte subsidiará o consumidor chinês de soja. Não faz sentido.

O segundo problema é que o subsídio embutido na TJLP não é crível. A TJLP é uma taxa escolhida de forma discricionária pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). É perfeitamente possível que outro governo avalie que o subsídio é excessivo e mude a forma de fixar a TJLP. A alegação de que a prática nas últimas décadas é suficiente para dar firmeza a esse instrumento de financiamento não é convincente.

Por exemplo, recentemente o atual governo não renovou automaticamente a concessão de algumas usinas hidroelétricas da Cesp e da Cemig ao fim dos contratos. Isto contrariou a prática dos últimos 30 anos em relação a usinas hidroelétricas, em que houve pelo menos uma renovação automática.

Em outras palavras, apenas o fato de que algo seja feito de determinada forma há décadas não é garantia suficiente para o investidor --é preciso que tudo esteja solidamente estabelecido em contrato para que haja segurança.

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