domingo, agosto 04, 2013

Jeitiño argentino - HUMBERTO WERNECK

O Estado de S.Paulo - 04/08

Tento imaginar como teria ficado o bom humor do papa Francisco se ele tivesse esticado a semana que passou aqui, como em tom de brincadeira chegou a sugerir. Tranquilo não seria. Vamos reconhecer: à medida que se espicha a convivência, cresce a nossa falta de cerimônia. Reparou como tinha cada vez mais gente pelejando para se pendurar no pescoço do simpático Bergoglio? Dali para a frente, Sua Santidade correria o risco de virar Chico, Chiquinho, Chicão. Ou será que o frisson da novidade - um papa argentino e sem algarismos romanos - não daria lugar ao tédio?

Tédio, sim. Lembra da história da Brigitte Bardot? No auge de suas graças, a moça derrubou os queixos da nacionalidade na primeira vez que nos visitou, no verão de 1964. Na segunda, porém, pouco tempo depois, já não causou tanta sensação, e houve mesmo algum nariz torcido: "Pô, de novo a chata da Brigitte Bardot...". Imagina se voltasse hoje, fanada por décadas de muito trato nas baleias e bem pouco nela mesma.

Muito diferente do Francisco, que só recebeu paparicos. Talvez tenha sido isso, agrados, o que faltou a outro argentino, o escritor Roberto Arlt, nos dois meses que passou no Rio de Janeiro, no primeiro semestre de 1930, ao longo dos quais transitou do mais ingênuo embasbacamento ao mais corrosivo fel, nas 39 crônicas (Aguafuertes Cariocas) que enviou para um jornal de Buenos Aires, recentemente reunidas em livro.

Arlt, que morreu jovem, aos 42 anos, deixando romances importantes como Os Sete Loucos e Os Lança-chamas, completava 30 no dia em que chegou ao Rio, 2 de abril. O plano era passar meses, mas 58 dias depois estava pegando o hidroavião de volta - não sem antes ter alimentado fartamente esse bate-boca que opõe brasileiros e argentinos sem mais o que fazer. Fla-Flu bocó que não é de hoje. Quando foi morar em Londres, em 1933, o compositor e poeta Jayme Ovalle desembarcou em companhia de um macaquinho. Chapéu coco, monóculo e macaco. O bicho pertencia a um tripulante do navio, e a bordo uns argentinos deram de chamá-lo "brasileño", provocação que açulou os brios nacionalistas de Ovalle ao ponto de levá-lo a adquirir o irrequieto compatriota.

Nas primeiras crônicas, Arlt está encantado com o Rio e os cariocas. A avenida Rio Branco lhe parece tão perfeita quanto a avenida de Mayo, de Buenos Aires, o que não é elogio pequeno. "Uma cidade de gente decente", escreve ele no segundo dia, deplorando "a grosseria" dos argentinos. "Um ritmo de amabilidade rege a vida nesta cidade." Anda "por bairros aparentemente facinorosos" e só vê "respeito pelo próximo". O único "mal educado", conclui, era ele, pois olhava as pernas de uma garota num café.

Interroga-se: "São os brasileiros diferentes de nós? Sim, têm a alma educada, são mais corteses". Entre mulheres e homens, acredita, reina a igualdade. "A paisagem é linda; as montanhas azuis, as árvores... - mas que importância pode ter a paisagem ante as belas qualidades do povo?"

Menos de uma semana depois, porém, o forasteiro começa a ver defeitos - e não para mais. Queixa-se do vazio das noites no centro, tão diferentes da animação de Buenos Aires. Às 11 horas, todos estão deitados. Ainda se os colchões não fossem tão ruins... O brasileiro só trabalha e faz filhos. "Estou seco de tanta virtude", desabafa mais adiante. O Rio, "cidade de província", lhe parece triste porque não tem flores: "Dois milhões de habitantes e nenhum jardim, nenhuma flor!" Foi a Copacabana e não se impressionou: "É inútil. A mulher, para interessar, tem que estar vestida".

A certa altura, passa a se recriminar: "Quem me mandou sair de Buenos Aires?" Que foi ele fazer "nesta cidade virtuosa" onde não há sequer ladrões e os cinemas são "pequenos como caixas de bombons"? Admite: "Estou me tornando argentinófilo" - e proclama: "Buenos Aires é única na América do Sul. Única". Estar no Brasil, conclui, é estar completamente só. A tal amabilidade das pessoas? Tudo da boca pra fora. Entre os negros, que no início o haviam encantado, eis que agora descobre uns tantos que são quase "babuínos".

Já pensou o que o Arlt teria escrito se tivesse ficado aqui mais um tempinho?

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