domingo, julho 21, 2013

O suicídio anunciado de Pedro Nava - HUMBERTO WERNECK

O Estado de S.Paulo - 21/07

Tanto tempo depois de Pedro Nava disparar um tiro contra a própria cabeça, aos 80 anos de idade, tenho hoje poucas dúvidas de que o grande escritor mineiro há muito caminhava para se matar. Se não fisicamente (como fez naquela noite, 13 de maio de 1984, arriado num banco sob um oitizeiro quase em frente à sua casa, no Rio), ao menos literariamente Nava teria decidido abreviar o fim.

Não vou dizer que eu desconfiava disso quando, um ano antes, passei alguns dias conversando com ele, em seu apartamento na rua da Glória, para escrever na IstoÉ um perfil do memorialista às vésperas de completar 80 anos. Hoje vejo que poderia, deveria ter desconfiado, tantas eram as evidências. Estavam numas enigmáticas entrelinhas de nossa conversa, quando, enfático, Nava deplorava a erosão do corpo na velhice e insistia no esplendor da juventude e no primado do amor físico. Estavam sobretudo nas 2.500 páginas dos seis volumes de memórias que ele publicou em vida. Depois de sua morte, voltei aos livros - e tudo então me pareceu transparente.

"Sou um suicidário", chegou a dizer Nava, pela boca de um personagem de O Círio Perfeito, saído cinco meses antes da tragédia. "O calvário para o suicida é arranjar o revólver, providenciar o veneno, pendurar a corda no gancho, sentar-se no peitoril da janela." Naqueles dias em que o entrevistei, estive também, para falar sobre ele, com Afonso Arinos de Melo Franco, seu amigo de vida inteira, e o ex-senador me contou que Nava, certa vez, o demovera da ideia de matar-se. Saiu levando a arma - cuja lembrança, um ano mais tarde, me veio instantaneamente, ao saber do suicídio. (Mas não, não foi com o trabuco de Afonso Arinos que Pedro Nava escoiceou as têmporas, e sim com um Taurus calibre 32, comprado em 1980.)

A revelação de que o escritor se matou porque estava sendo chantageado por um garoto de programa - circunstância que a imprensa descobriu no ato, mas sobre a qual silenciou por anos, até que Zuenir Ventura escancarasse aquele mau momento do nosso jornalismo num memorável capítulo de Minhas Histórias dos Outros - veio jogar luzes sobre a trajetória de Nava rumo a um silêncio sem apelo.

Quem conhece a extraordinária sensualidade de sua prosa pode se indagar se o memorialista, ao desfiá-la, não enveredou, ou se viu arrastado, por aquele "desregramento sistemático de todos os sentidos", capaz, disse Arthur Rimbaud, de fazer do poeta um vidente. Não é descabido imaginar que Nava, ao se contar, tenha se aproximado por demais de algo que havia nele desde sempre, muito bem guardado, e que por inconfessável não deveria subir à tona, mas que ainda assim foi emergindo, inelutavelmente, até se converter, chegado à superfície, na fogueira que o consumiria.

Nos quatro primeiros volumes de suas memórias - Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro e Beira-Mar -, Pedro Nava está na primeira pessoa. A partir de Galo-das-Trevas, em que as sombras já estão no título, ele se refugia num alter ego, José Egon Barros da Cunha, protagonista também do sexto volume, O Círio Perfeito e das poucas páginas de Cera das Almas, em que trabalhava quando se matou.

Nas linhas finais de O Círio Perfeito, Nava chegou à beira de uma radical revelação: ao descobrir que o Egon flagrara, certa madrugada, seus amores masculinos, o misterioso e fascinante amigo Comendador entrega os pontos - e se dispõe a contar: "Agora escuta". Cera das Almas não retoma a narrativa nesse ponto, mas não tarda a enveredar pela descrição naturalista de um corpo de macho em que arde "a arrogância floral dos genitais".

Penso na sugestão crepuscular dos títulos dos três últimos livros: um candelabro cujas 13 velas vão se apagando uma a uma, um círio integralmente consumido e aquilo que restou de sua combustão. Com ou sem revelação, pareciam fechar-se os horizontes: difícil supor que depois disso algo estivesse por vir - embora as memórias mal houvessem entrado na década de 30, faltando ainda meio século para o momento em que eram escritas. Físico ou literário, ou ambos, era o silêncio final a se precipitar.

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