terça-feira, julho 30, 2013

Não sinto a dor como na minha cara - FERNANDO BARCELLO

O GLOBO - 30/07
Quando eu tinha 8 ou 9 anos de idade, não me lembro muito bem, ao sair de casa depois de uma noite de tiroteio na Cidade de Deus, havia um corpo na frente do portão de minha casa. Esse corpo estava coberto por um pano branco e eu tive que pular sobre ele para poder ir para a escola. Aos 13 anos, perdi o primeiro amigo de infância, assassinado por policiais mesmo estando desarmado. Aos 18, perdi meu melhor amigo. Nem do tráfico ele era, mas foi morto com um tiro de fuzil quando ia para a academia. Aos 21, tomei uma dura da policia e tive que lamber meu RG para ser liberado.

Desde que me entendo por gente, sofri vendo policiais matando, dando tapa na cara e invadindo casas. Minha casa foi invadida por 4 policiais, quando eu tinha 10 anos, e minha irmã, 4. Até a panela do arroz eles examinaram. Fui testemunha dessa guerra. Todos esses episódios foram criando uma espécie de ser indestrutível que, na verdade, foi se destruindo aos poucos com sequelas e mazelas. Sequelas a gente acaba nem percebendo que existem, depois de um tempo você liga no automático e começa a achar tudo normal. Se eu for na casa de um amigo e tiver uma vala no quintal, vou me incomodar com o cheiro, mas vou sentar lá e tomar um café em meio à falta de saneamento básico.

Não sou contra as manifestações, mas tenho coisas dentro de mim que fazem com que os últimos acontecimentos com policiais e manifestantes me pareçam normais.

Quando digo achar normal, não quer dizer que não fico indignado. Fico, mas não perco o sono por isso, não deixo de dar risada e faço até piada com as porradas que manifestantes tomam na rua. Sim, eu sei que é lamentável, um retrato triste. Mas, ora essa, eu sou um artista, diretor de teatro e cinema, estou achando graça em branco tomando porrada de policia? Não é algo do qual eu tenha controle, é mais forte que eu.

Estar aqui escrevendo esse texto significa que acredito que, depois de tantos anos, talvez eu precise de tratamento para sarar minhas sequelas. De onde eu venho, a manifestação era silenciosa e ao pé do santo para o qual a gente rezava para acabar o tiroteio. Não tinha câmera, não tinha abraço, não tinha protesto, as balas não eram de borracha e os ninjas daqui davam mortal para trás até cair no chão quando o fuzil começava a cantar.

Quando vejo toda essa indignação na TV, a rapaziada sendo presa e levando porrada, dá até um alivio. Eu penso: agora, sim, temos um país de todos, um país mais justo, onde vento que venta cá venta lá também. E venta? Venta nada, se acontecer uma reforma política e os manifestantes voltarem para suas casas e para seus condomínios, quem vai levar o tapa na cara? Quem vai voltar a apanhar?

Sendo assim, o que tenho que escolher? Eu escolho que a porrada não seja na minha cara, que seja na cara do outro. Acho um absurdo, fico indignado, mas não sinto a dor como na minha. Que absurdo, você está pensando agora, esse cara está torcendo para continuar tudo como está e o povo continuar apanhando? Ué , acho que talvez esteja, sou extremamente egoísta quando se trata de porrada. Se tem reforma, se para tudo, coisas serão escondidas, bocas serão caladas e tudo vai para baixo do tapete. E a porrada volta para a Maré, para a CDD, para Vigário, para Acari. Com ou sem UPP, vai ter gente morrendo e desaparecendo na favela, e não vai ter protesto.

Mas aí um amigo me liga e diz: Fernandão, é o povo, bróder . Aí eu digo: ô irmão, eu nunca fui parte do povo, não vai ser agora que a porrada não é em mim que vou virar povo. Eu sempre via entrevistas das pessoas dizendo que essa guerra nas favelas precisava acabar, essa guerra já está indo para o asfalto. Vi o povo no Jardim Botânico pedindo à policia para matar o Sandro do ônibus 174. Vi gente achando que a solução era matar traficante e que assim tudo ia ficar na boa. Vi apresentadora de TV dizendo que dava vontade de tacar uma bomba e matar todo mundo, se referindo à fuga dos traficantes do Complexo do Alemão, em 2012. E ai? Quem são os sequelados?

Sou a favor de um Brasil melhor, mas quero um Brasil melhor para todos, pois se todas as reivindicações forem atendidas, mesmo assim o povo da favela vai continuar sofrendo os abusos. As reivindicações são para um povo que é minoria, para um povo que só se mexeu quando começou a afetar os seus. É assim, ninguém deixa de lavar o carro e de deixar a mangueira aberta porque não tem água no sertão da Bahia. Podem fazer isso por vários outros motivos, mas não porque tem alguém sofrendo. Sem querer generalizar, mas alguém aí acha que se estivesse bom para a classe média ia ter manifestação por conta do sumiço do Amarildo? Ou pelas mortes na Maré?

Eu não fui a nenhuma manifestação e não vou. Estou diariamente me manifestando com mais de 80 crianças de um projeto na Cidade de Deus chamado Grupo de Teatro Os Arteiros. Estou investindo na educação delas, investindo em um Brasil melhor. Não sou tão otimista na mudança do país, talvez não mude, talvez sim, vai saber. Mas a certeza de que não vou colher os frutos não me dá o direito de não plantar a semente.

2 comentários:

Nubia disse...

Olá, Murilo, você poderia passar o link do texto publicado no jornal O Globo? Estou procurando o original, mas não encontro.
Obrigada!

Anônimo disse...

Oi Murilo,
Caramba, eu não gostei nada desse texto. Que postura triste desse Fernando Barcello. Deve ser um jovem, pois se esquece da classe média de 64 a 68 que perdeu a vida ou a liberdade, lutando contra a ditadura militar. Se esquece que a sociedade levou anos para se recuperar desse golpe e só agora, finalmente, conseguiu produzir uma nova geração, antenada e corajosa o suficiente para ir às ruas, lutar pelo país que desejamos e não tivemos competência / coragem para fazer. Fernando Barcello, seria muito legal se você também fosse para as ruas, mas não se preocupe se não quiser ir. Estaremos lutando por você e pelos seus 80 alunos também e talvez um dia você mude de idéia e se junte. Será muito bem vindo. Abs