terça-feira, julho 30, 2013

Metafísica e metodologia - ANTÔNIO DELFIM NETO

VALOR ECONÔMICO - 30/07

Nancy Cartwright é, provavelmente, a mais bem equipada metodologista que explora o campo das disciplinas sociais. Num livro que já vai adquirindo a característica de um "clássico" ("Hunting Causes and Using Then", Cambridge University Press, 2007), faz a seguinte observação: "A metafísica e a metodologia têm que andar de mãos dadas. A metafísica nos diz o que algo é. A metodologia deve encontrá-lo. Nossos métodos justificam-se mostrando que eles são, de fato, um bom caminho para encontrarmos o que está sob estudo. Por outro lado, se nosso algo metafísico não pode ser concretizado através de nossos melhores métodos, devemos suspeitar dele" (pág. 132, tradução livre).
Há uma extravagante tendência entre alguns praticantes da "teoria" econômica de propor a existência de entes metafísicos. No próprio ato de criação eles são manipulados algebricamente, como se tivessem evidente contrapartida na realidade. Deles se deduzem teoremas que, num passe de mágica, transformam-se em recomendações normativas à política econômica. A profissão tem sido objeto de justificadas piadas, porque tal método é chamado de "suponhamos que...".
Um dos entes metafísicos mais manipulados pelos economistas é o famoso "produto potencial". Intuitivamente sabemos que ele deve existir. Os fatores de que dispomos (recursos naturais, energia, instituições, infraestrutura, estoque de capital, nível de educação, tecnologia, força de trabalho e nível de saúde, relações com o exterior etc.) são finitos e, no prazo curto, relativamente fixos. Logo, deve existir um nível máximo de produção possível, que é atingido quando se esgota a utilização do fator complementar mais escasso para a realização do processo produtivo.
O problema, como disse Cartwright é achar um "bom caminho para encontrá-lo". A única coisa não escassa na disciplina da economia é a imaginação. Numa contagem não exaustiva, existem pelo menos quatro metodologias para concretizá-lo (Cotis, J.P. e outros, "Estimates of Potencial Output", OCDE): 1) estudo da tendência (com duas variantes); 2) filtros univariados (com quatro variantes); 3) filtros multivariados (com três variantes); e 4) através de funções de produção (com três variantes). Ao todo, 12 metodologias, cada uma com algumas virtudes e muitos defeitos!
E qual é a conclusão do trabalho? Duas: a) qualquer que seja o método usado, é necessário um uso crítico e não mecânico do resultado. Em particular não se deve esquecer as hipóteses que o suportam e os seus defeitos; e b) vários dos métodos produzem resultados semelhantes para o produto potencial, e, em certa medida, para o "output gap". Para o último, entretanto, há uma larga divergência na sua fixação.
Ora, é exatamente a dimensão do "output gap" que interessa à política fiscal (para determinar o déficit fiscal estrutural e saber se ela é expansiva ou restritiva) e a política monetária (para saber o que fazer com a taxa de juros básica). Essa, aliás, exige o conhecimento de outro ente metafísico de reconhecimento metodológico duvidoso, a "taxa de juros real de equilíbrio".
O produto potencial é o nível do PIB que usa plenamente o mais escasso dos fatores de produção (com as instituições dadas), com equilíbrio interno (menor taxa de inflação possível) e externo (déficit eternamente sustentável). Seria atingido por uma manobra da política fiscal coordenada com a política monetária. É o Santo Graal procurado pelos economistas da Távola Redonda e outros mais céticos...
O problema é que precisamos de estimativas do produto potencial e do "output gap" em tempo real para realizar a coincidência entre o equilíbrio interno e externo através da divina manipulação das políticas monetária e fiscal. E o que nos oferecem todos os métodos até agora? Uma pálida estimativa do passado. Não se trata de "erros" de estimação, mas da agregação de informações não disponíveis no momento da estimativa.
Os números abaixo dão uma ideia do que isso pode ser. Eles revelam a estimativa de crescimento anual do PIB americano no quarto trimestre de 2008, quando era mais fundamental conhecê-lo para o exercício das políticas fiscal e monetária e sua revisão em 2010:-primeira estimativa: -3,8%; terceira estimativa (última): -8,9%. Nível da revisão: -5,1%
Parece que tinham razão os economistas que intuíram e afirmaram que as políticas fiscal e monetária dos EUA naquele momento não tinham a potência necessária para elevar rapidamente o nível do PIB nominal à sua tendência. Essa não é uma exceção. A tabela abaixo mostra a variação das estimativas do PIB em 1975 em vários países, calculados em 1976 e as revisões posteriores em 1991 e 2011. Honestamente, como levá-los a sério na formulação da política econômica?
No Brasil, o nosso diligente IBGE está trabalhando numa revolução metodológica para estimar, de acordo com as últimas recomendações da ONU, os dados da contabilidade nacional desde 1995. Os resultados serão divulgados no fim de 2014 ou no início de 2015. Saberemos então quanto do nosso ente metafísico foi capturado e materializado na versão empírica que tem, por necessidade, orientado nossa política econômica.

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