quinta-feira, março 21, 2013

Um cartel na política brasileira? - PEDRO FLORIANO RIBEIRO

Valor Econômico - 21/03

Em 1995, os cientistas políticos Richard Katz e Peter Mair propuseram o conceito de "partido cartel" para descrever as transformações dos sistemas políticos contemporâneos. Eles destacavam que os grandes partidos europeus já não eram capazes de sustentar vínculos sólidos com a sociedade, ao mesmo tempo em que a política se profissionalizava, e os custos de campanha explodiam. Nesse contexto, as fontes de sobrevivência das legendas se deslocavam da sociedade para o Estado, por meio do repasse direto ou indireto de recursos públicos, e do emprego do aparato estatal como espaço de sobrevivência para militantes e líderes partidários. Os grandes partidos, superando diferenças ideológicas e as fronteiras governo/oposição, passaram a cooperar para garantir sua posição privilegiada de acesso aos recursos públicos, e para aumentar os montantes desses recursos, formando uma espécie de cartel.

Apesar de suas fragilidades teóricas e empíricas, o modelo ajuda a iluminar alguns processos atuais da política brasileira. À diferença da Europa, a dependência estatal não é nenhuma novidade no Brasil: desde os luzias e saquaremas da época imperial, os grandes partidos sempre giraram ao redor da órbita estatal. Nesse sentido, a colonização da máquina pública (patronagem) talvez seja a fonte mais tradicional de sustento dos partidos brasileiros, e que ainda possui um peso considerável: só no governo federal há cerca de 22 mil cargos de livre nomeação, à disposição de bancadas e partidos. Em segundo lugar, cálculos da Receita Federal estimam que a renúncia fiscal às empresas de rádio e televisão, como ressarcimento pela exibição das propagandas eleitorais e partidárias (gratuitas aos partidos), custou aos cofres públicos mais de R$ 600 milhões em 2012, e quase R$ 1 bilhão em 2010.

Quanto aos recursos diretos, os partidos garantiram em 1995 um aumento substancial do fundo partidário (Lei 9.096), fonte mais estável de financiamento das legendas: de R$ 7 milhões transferidos às cúpulas partidárias em 1995, ele passou para R$ 130 milhões no ano seguinte, superando os R$ 220 milhões em 2010 (valores corrigidos). Para 2011, partidos governistas e de oposição costuraram um acordo que elevou o montante total em cerca de R$ 100 milhões; com isso, o fundo atingiria R$ 350 milhões em 2012. Assim como na distribuição do tempo de propaganda, o critério de divisão do fundo privilegia a força parlamentar. Desde 2007, 5% dos recursos do fundo são divididos igualmente, e 95% são distribuídos proporcionalmente à votação do partido na última eleição para a Câmara - um critério menos favorável aos grandes partidos do que as regras vigentes entre 1996 e 2006, que concentravam praticamente todo o fundo partidário nas mãos das oito ou nove maiores legendas. Esses recursos representam, em média, mais de 80% da arrecadação dos partidos brasileiros nos anos não eleitorais; em ano de eleição, a dependência estatal diminui, principalmente para os maiores partidos, que obtêm grandes montantes de doações privadas.

Dependência dos recursos públicos e redução das diferenças na distribuição desses recursos (o que minimiza os custos de derrotas eleitorais); diminuição das distâncias ideológicas; políticas de alianças "ecléticas"; estabilização dos mesmos atores no tabuleiro político, por período de tempo inédito na história brasileira; e indícios de cooperação entre os maiores partidos, superando trincheiras entre governo e oposição. A política brasileira caminharia a passos largos para um processo de cartelização?

Na verdade, há outras variáveis a serem consideradas. As barreiras de entrada no sistema e de acesso aos recursos públicos são frágeis, tornando improvável a formação de um cartel fechado e estável: as brechas previstas e ratificadas pela Justiça para que os políticos possam mudar de partido sem perder o mandato, e a ausência da cláusula de barreira (derrubada em 2006 pelo STF), são fatores que facilitam a formação de novos partidos. Além disso, a fragmentação do atual sistema e o presidencialismo de coalizão colocam algum poder de barganha nas mãos dos partidos de porte médio, que assim conseguem enfrentar eventuais cartéis entre as maiores forças. Se somarmos a isso a possibilidade de coligação para as eleições legislativas (que permitem aos pequenos partidos eleger algum representante), temos um cenário em que mesmo os partidos minúsculos recebem fatias generosas dos recursos públicos, e no qual é possível quebrar um cartel com a formação de uma nova legenda (algo evidenciado pelo PSD de Kassab). Cabe considerar ainda que os recursos públicos, ao invés de impulsionarem o processo de cartelização, talvez estejam atuando em sentido inverso: se a política brasileira fosse financiada apenas com recursos privados, os grandes partidos (especialmente PMDB, PSDB e PT) provavelmente consolidariam uma posição cada vez mais dominante no sistema, na medida em que possuem as organizações mais robustas e uma maior capacidade de atração de doações e de lançamento de candidaturas competitivas por todo o país.

Em suma: o financiamento público das atividades partidárias não está entre os maiores problemas atuais da democracia brasileira, na medida em que ajuda a mantê-la mais arejada, competitiva e plural, abrindo espaço para atores, posições e vozes dissonantes. Assim, qualquer tentativa de reforma do sistema político não pode perder de vista o que se salva do atual estado de coisas: a democracia tem seus custos e, ao contrário da máxima de Tiririca, nada é tão ruim que não possa piorar.


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