domingo, dezembro 02, 2012

A incrível e incansável arte de se reinventar e se apaixonar - CORA RÓNAI


O GLOBO - 02/12
Diretor faz um balanço da carreira e fala da nova fase da vida, do casamento e dos novos projetos


Essa disponibilidade de se apaixonar e de partir para uma vida nova depois dos 70 - e, mais do que isso, de se abrir para uma nova família e um novo leque de amigos das mais variadas idades - revela que João Carlos Daniel, ator, diretor e produtor de televisão e cinema, com 60 anos de carreira completados neste dezembro, não é um homem comum. Numa altura em que a maioria das pessoas se aferra à rotina, ele não tem qualquer medo de recomeçar. É bem possível que o tempo passe, para ele, de forma diferente: seu pai morreu em 2008, aos 102 anos, e a mãe em junho passado, aos 101.

Sua vida mudou até geograficamente. Ele saiu da Barra e voltou para o Leblon, onde vive com quatro mil filmes bem catalogados e mais de 80 fotos autografadas de antigos atores e diretores, caprichosamente expostas no corredor. A família vai e vem: os quatro filhos de Olívia, mais os seus filhos Carla (do casamento com Dorinha Duval), João (do casamento com Betty Faria) e os netos Lys, Antonio, Valentina e João Paulo.

Sessões de cinema para amigos

Nos fins de semana, recebe amigos para sessões especiais do "Cine Daniel", que é como chamamos a salinha de cinema super equipada. Daniel, que assiste a um ou dois filmes por dia, tem uma memória prodigiosa. Lembra-se de tudo o que diz respeito a cinema: sabe quem filmou o que com quem, quando e onde. Lembra-se de cenas que, provavelmente, os próprios cineastas já esqueceram. Faz sensacionais análises do que viu. Conversar sobre cinema com ele é uma alegria; o papo com os amigos entra, não raro, noite adentro. Sei bem da fama de explosivo que o acompanhou ao longo da vida, sobretudo nos seus anos na Globo, mas o que vejo hoje é um homem contente, vivendo em harmonia consigo e com os que estão à sua volta. Como ele mesmo reconhece, Olívia é em boa parte responsável pela transformação.

- A minha primeira palavra sempre foi não. Daniel, você quer água? Não! Humm... talvez um pouquinho. Hoje digo: deixa eu pensar... Eu quero a água! Eu era muito defendido. Fui comandante total da minha vida, de todos os meus movimentos, por mais de 70 anos. Há uns três ou quatro consegui deixar de comandar e passei a apreciar isso. Eu precisava estar atento a tudo o que acontecia à minha volta, mas a Olívia fica atenta por nós dois. Quando eu viajava, cuidava dos passaportes, dos hotéis, dos horários; agora não tenho mais idéia da hora em que sai o avião, ou se vamos ao teatro ou ao cinema. Se eu não aproveitasse essa confiança mútua que tenho com a Olívia seria um bobo. Nós somos amigos, somos parceiros, somos admiradores um do outro. Todas as coisas que ela propõe são agradáveis. Os programas são agradáveis, a família é agradável, os amigos são agradáveis. Eu devo a ela, inclusive, o fato de ter parado de trabalhar.

Daniel parando de trabalhar? Isso é novidade! Pergunto que história é essa, e logo descubro que ele está envolvido com pelo menos três projetos diferentes, fora as consultorias informais que presta a amigos, ajudando-os com os seus filmes. Fica claro que o que aconteceu não foi uma pausa, mas uma mudança de estilo. Se não diminuiu o volume de trabalho, certamente diminuiu a intensidade com que se atira a ele.

Daniel Filho pisou num palco pela primeira vez aos sete anos, mas considera que começou a trabalhar, de fato, quando a sua carteira foi assinada, em dezembro de 1952. Estava com 15 anos e substituiu um ator que ficou doente num teatro em Porto Alegre. Fez muito teatro de revista, muito rádio: as peças e radionovelas se contam às centenas. Trabalhou na TV Tupi e na Excelsior e, em 1967, foi para a Globo, onde foi ator, diretor, produtor, diretor de criação e, finalmente, diretor geral. Foi o responsável por clássicos como "Irmãos Coragem", "Selva de pedra", "O astro" e "Dancin´ Days", levou Janete Clair para a emissora e fez, com ela, uma das mais bem sucedidas dobradinhas da história da teledramaturgia brasileira. Consolidou a novela como espinha dorsal da programação mas, ao mesmo tempo, inventou as séries brasileiras, como "Malu mulher" ou "Carga pesada". Criou "Sai de baixo" e "A grande família". Em 1990, no auge do poder, teve a audácia de pedir demissão. Montou sua própria produtora, a Lereby, e se transformou em campeão de bilheteria no cinema.

Sucessos e fracassos

Não era um novato na área. Ao longo dos últimos 60 anos, fez mais de trinta filmes como ator, foi supervisor artístico de outros tantos, dirigiu muitos. Foi até dublador. Esteve envolvido com alguns dos maiores sucessos da retomada, como "Carandiru", "Cidade de Deus", "2 filhos de Francisco"; assinou os dois blockbusters "Se eu fosse você"; levou a vida de Chico Xavier para as telas. Poucos trabalharam tanto, e com tanto sucesso. E os fracassos?

- Foram muitos! - exclama. - "Espelho mágico", por exemplo, ou "Acorrentados", que fiz na TV Rio... O que acontece é que, como fiz muita coisa, o que fica é uma média. Hoje todos falam de mim e da Janete como uma dupla que só fazia sucessos, mas não era bem assim. "O Semideus", por exemplo, foi um fracasso tremendo. "O homem que deve morrer" foi uma bobajada. Para cada "Irmãos Coragem" que deu certo, tenho algo que não deu. Por outro lado, o fracasso ensina muito mais do que o sucesso. O sucesso todos aplaudem, acham ótimo e pronto. Ao passo que, num fracasso, você pode realmente analisar os seus erros, desde o erro psicológico de se achar ótimo, aos erros específicos daquela produção.

Um erro comum, do qual tem muito medo, é de tocar um projeto sem ter o ator ou a atriz certos para o papel. Esta é a sua principal preocupação em relação a um dos roteiros em que trabalha no momento, um filme noir baseado no primeiro livro do delegado Espinosa, "O silêncio da chuva", de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Outro projeto é levar para o cinema "Confissões de adolescente", de Maria Mariana, que fez muito sucesso como teatro e série de televisão nos anos 90. O roteiro está sendo escrito por Matheus Souza, jovem diretor de 24 anos em quem Daniel põe a maior fé. A atualização do texto é delicada, mas imprescindível: vinte anos depois da estréia da peça, o mundo mudou completamente.

Essa mudança, aliás, encanta Daniel, que observa com curiosidade a relação que a turma que está chegando mantém com o cinema. Antes das fitas, dos DVDs e, sobretudo, da internet, ser cinéfilo dava trabalho. Era preciso frequentar videoclubes, ir ao Paissandu, viajar. Quando ele ia a Paris, que sempre teve filmes do mundo todo em cartaz, passava as tardes enfurnado nos cinemas, se atualizando.

Musicais na mira

Um terceiro trabalho acaba de ser encomendado por Luiz Calainho e Aniela Jordan, sócios da Aventura, a produtora por trás de musicais como "A noviça rebelde" e "Um violinista no telhado". Eles propuseram a Daniel transformar "Se eu fosse você" num... musical, é claro!

- Gostei da ideia. É engraçada. O Brasil está se tornando um país de musicais, não só os estrangeiros, como os que nascem aqui. Ontem por acaso vi Tim Maia, que está extraordinário. De modo que estou pensando nisso, começando a armar esse circo. Acho que "Se eu fosse você" tem que ter uma trilha de músicas já conhecidas. Pois a Barbara, filha da Olívia, me deu a ideia de fazer o espetáculo com músicas da Rita Lee, que tem muita coisa que se adapta a situações de marido e mulher. Já falei com ela, que talvez ainda faça uma ou duas músicas novas, mas é por aí que nós vamos.

Os vários projetos simultâneos têm explicação: todos são trabalhosos, demoram a acontecer. O musical só estreia em outubro do ano que vem. Trabalhar num projeto só seria quase como não fazer nada, e para isso Daniel Filho ainda não está preparado. É bem verdade que tem treinado: há cerca de um ano, ele e Olivia compraram um apartamento em Nova York, onde aproveitam a felicidade de estar numa das suas cidades favoritas sem precisar sair correndo para ver tudo. É lá - onde pretendem passar de três a quatro meses por ano - que curtem a vida a dois, coisa impossível de fazer no Rio com a família, o trabalho, a divisão entre o apartamento dele e a casa dela. A rotina pessoal de Daniel, que não deixa os seus projetos para trás, é até parecida com a do Rio - mas a produtora, felizmente, não vai na bagagem.

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