segunda-feira, novembro 05, 2012

Na memória do tempo - LUÍS EDUARDO ASSIS


O Estado de S. Paulo - 05/11



Com tripé ou sem tripé, a política econômica mudou. O câmbio ficou praticamente fixo, os juros caíram muito, o superávit primário foi reduzido e a inflação será o que for possível, A queda dos juros é particularmente impressionante. Em setembro, a taxa Selic ficou em 0,54%, a mais baixa da série histórica (“nunca na história deste país..”). Ficaremos assim por muito tempo, até as circunstâncias exigirem o contrário.

Essa mudança radical é uma decisão técnica ou meramente política? Essa pergunta é ingênua, mas traz uma série de implicações. Pode-se escapar da dúvida argumentando que a administração da política econômica é sempre (logo, nunca “meramente”) política, mas a dúvida persiste. Por decisão “política” pode-se entender duas coisas, parecidas, mas diferentes; algo que convenha apenas ao governo, em detrimento da maioria dos eleitores, e algo que surta resultados positivos no curto prazo, mas que acarrete dificuldades no futuro.

A primeira alternativa tem vida curta em regimes democráticos. A segunda é mais interessante e remete ao clássico dilema intertemporal. Sem considerar a eficácia da política monetária em economias indexadas e como política fiscal frouxa, o uso de juros altos pode ser visto como um preço a ser pago no presente para ter o benefício de uma inflação mais baixa adiante. Uma escolha em tudo assemelhada à decisão de comer fruta ou doce na sobremesa. Dilemas intertemporais são objeto de estudo recente por alguns economistas, que conseguiram complicar bastante este assunto simples. Os curiosos poderão se socorrer no interessante texto de Daniel Read, da London School of Economics (Intertemporal Choice, Working Paper LSEOR 03.58).

A questão é que a conveniência “política” dos juros baixos, ainda que seja picante, pressupõe duas hipóteses. A primeira é que os eleitores se deixam enganar repetidamente, da mesma forma que Gharlie Brown sempre acreditou que Lucy seguraria a bola até ele chutar. A segunda é que o Banco Central teria abandonado sua função institucional, que é a de, justamente, arbitrar esse conflito intertemporal e antecipar os efeitos colaterais de uma política voltada para o crescimento no curto prazo.

Não faltará quem pense que essa mediação é desnecessária e que as pessoas em geral podem se responsabilizar por suas escolhas coletivas. No limite da imaginação, seria possível conceber que decisões sobre juros poderiam ser tomadas diretamente pela população. O que aconteceria se todo cidadão fosse membro do Comitê de Política Monetária (Copom)? Qual é a chance de que decisões tomadas por um grande grupo de pessoas sejam melhores que as tomadas por um pequeno grupo de especialistas? James Surowiecki, jornalista da revista The New Yorker, gastou um livro inteiro para defender a tese de que isso é viável (The Wisdom ofCrowdSy 2004). Por meio de uma série de evidências anedóticas, ele tenta vender a ideia de que a inteligência coletiva gera soluções superiores, mesmo para questões que envolvem complexidade técnica. O argumento contrário - de que a voz do povo não é a voz de Deus - é mais fácil de defender.

Os exemplos históricos de democracia direta sugerem que a sabedoria popular é duvidosa e rarefeita. O caso da Proposição 13, aprovada na Califórnia em 1978, é sugestivo. Por meio dessa iniciativa, limitou-se o poder de taxar os imóveis. O que parecia inicialmente interessante - pagar menos impostos - acabou resultando em crise financeira no setor público e forte transferência do poder local para a esfera estadual, algo antagônico ao credo conservador que inspirou a proposta. Nos mercados financeiros, os exemplos de loucura coletiva são abundantes, como mostram as bolhas especulativas, que estão longe de ser um fenômeno da modernidade e retratam o “carnaval do capitalismo”, nas palavras do historiador Edward Chancellor (The De: vil Take the Hindmost, 1999).

Aceita a desconfortável hipótese de que os economistas são socialmente úteis no uso de sua capacidade de ajudar uma democracia representativa a tomar decisões cujas consequências se desdobram no tempo, como mitigar o risco da prevalência sistemática dos interesses de curto prazo? No caso da inflação brasileira, seria conveniente começar pela singela admissão pelo governo de que uma inflação baixa é um bem público que beneficia mais que proporcionalmente as pessoas de menor renda.

Combater a inflação não é limitar o crescimento, mas garantir que ele seja perene. Também não seria demais atribuir responsabilidades e estabelecer uma “política de consequências”. Em apenas 4 dos 13 anos em que vivemos sob o regime de metas, a inflação ficou abaixo do alvo. Para uma meta acumulada desde 1999 de 81,4%, registramos um índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)de 146%, um desempenho, digamos, menos que espetacular. Pelas regras atuais, isso é resolvido por meio de uma explicação protocolar do Banco Central e causa menos comoção do que um gol anulado na Série B.

Falta também ambição (“ousar lutar, ousar vencer”, diziam as pichações na USP nos anos 70). Desde 2005 a meta está empacada nos 4,5% ao ano, muito mais alta que a inflação dos nossos principais parceiros comerciais, o que é particularmente preocupante depois que a flutuação do câmbio foi restringida. A responsabilização do Banco Central pelo cumprimento rigoroso da meta não seria razoável, por outro lado, se não houvesse uma convergência de esforços da política fiscal. Tudo isso está longe da agenda atual.

O sistema de governança que escolhemos não estimula a perseguição de objetivos de longo prazo. É fácil prometer e não cumprir. Resta confiar na memória do eleitor e na sua capacidade coletiva de aprender com os erros do governo.

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