sábado, novembro 17, 2012

Filosofia de táxi - ARNALDO BLOCH


O GLOBO - 17/11

Ficar com o carro parado na oficina tem vantagens. Caminha-se mais, e, eventualmente, se emagrece. Tira-se a bicicleta do porão. Pega-se um ônibus para ver a rua com humildade. Ou, da janela de um táxi, curte-se no rosto um vento noturno de maresia.

O táxi é um universo singular. Não tem a dispersão do ônibus nem a solidão do automóvel. O taxista, sua atitude, sua conversa, é sempre uma incógnita. O futebol. Uma grande perda ou desilusão. A tensão por causa de um engarrafamento, entre suspiros e tapas no console. E, cada vez mais, especulações sobre a existência, a vida e a morte. Como aquele senhor que puxou conversa no domingo passado.

- O senhor é católico, não é?

- Não, judeu.

- Bom, mas o senhor tem um deus.

- Se tiver, é o mesmo que o senhor tem... o pai... o eterno... o criador... não é?

- É, dizem.

- Dizem.

- Estou vendo que o senhor entende muito de religião.

- Entendo pouco. E não sou religioso. Creio na ciência. Aliás, a ciência nem é bem uma questão de se crer.

- Então me diz: o senhor acredita que eles foram mesmo à Lua?

- Claro que eles foram à Lua!

- Como é que o senhor sabe? O senhor, pessoalmente, tem provas disso?

- Bom, muitas pessoas sabem, há documentação ampla. A razão mostra que é possível. Se um avião voa, por que uma nave mais rápida e preparada para o espaço não vai à Lua? Além disso, a Lua é logo ali.

- Logo ali?

- A Lua está só a 384 mil quilômetros.

- O senhor está me zoando. Só o meu carro já fez mais de 800 mil.

- Então o seu carro já foi à Lua e voltou.

- Nem foi, nem voltou.

- Se tivesse estrada para a Lua, a 100 quilômetros por hora, sem dormir, o senhor chegaria lá em 5 meses.

- Que nada. Um século.

- Cinco meses. Pode fazer as contas. A Lua é perto. O resto é que é longe.

- O senhor quer dizer que tem coisa mais longe que a Lua?

- Muitas coisas. O Sol.

- Não sei. Aquilo em que o homem põe a mão, eu desconfio.

- Bom, o Homem pôs a mão na Bíblia.

- Pois é. E Alá? Alá, quem viu foi o Homem. E os orixás. E a ciência, o Homem pôs a mão.

- Mas a ciência comprova, até prova em contrário. O seu carro, por exemplo. Ele só anda por causa da ciência. Os aviões. Os foguetes. Mas as criaturas divinas só existem através das palavras, ou de uma revelação. E revelação é um acontecimento muito pessoal. Fica só no relato de quem viu. Na confiança. Na fé.

- Pois eu acho que tem muita coisa. Outro dia, de madrugada, rua deserta, pego um passageiro para um morro da cidade. Subo, deixo o passageiro e, quando estou descendo, ouço a voz de uma mulher, mas não entendo o que ela diz, está escuro. Desço o morro, passo de novo na mesma avenida deserta, e outro passageiro acena, pedindo pra ir ao mesmo lugar. Deixo o segundo passageiro no morro, e dessa vez o farol ilumina uma mulher desesperada acenando pro táxi e gritando. É a mesma voz. A mulher está em sofrimento de parto, placenta estourada e tudo. Resumo: eu salvo a vida dela. O senhor acha que isso é coincidência?

- Acho.

- Então me explica essa outra: um dia eu estou trafegando pelas Paineiras e vejo dois sujeitos passando na pista contrária, correndo o risco de serem atropelados. Comento com o passageiro, mas ele jura de pés juntos que não viu nada.

- O senhor considerou a possibilidade de que o passageiro estivesse...

- De sacanagem comigo? Considerei, sim. Considerei também que eu podia estar ficando maluco. Tem que considerar tudo. Mas coincidência é que não foi!

- Coincidência. Tudo é coincidência. A própria coincidência é coincidência. Ou o passageiro se distraiu, ou estava de sacanagem. Ou o senhor teve, sei lá, uma visão.

- Uma visão...

- É. Não fui eu que tive a visão. Foi o senhor. É o senhor quem está contando. Não duvido, mas não afirmo. Quando eu tiver a minha visão, vou pensar no assunto. Se procuro um psiquiatra, um rabino, um terreiro, um vidente, ou simplesmente acredito.

- Então o senhor é ateu.

- Agnóstico. Não digo sim, nem não.

- Quer dizer, em cima do muro.

- De certa maneira, sim. Espiando. O senhor pode espiar também. Na internet, pra entender melhor a coisa da Lua.

- Não. Internet é coisa do Homem. Babel. Prefiro conversar. Procurar um livro.

Livro também é coisa do Homem.

- Mas é diferente. Não é essa correria. A gente conversa, ouve, pensa, se concentra.

- O senhor passou o meu prédio.

- Mas ainda não chegamos à Lua.

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