domingo, setembro 16, 2012

A pátria de toga - EUGÊNIO BUCCI

REVISTA ÉPOCA 


Desde que os ministros do Supremo Tribunal Federal caí­ram nas graças dos holofotes, este país anda diferente. Tem um ânimo diferente. Mais que famosos, os jurisconsultos do STF ganharam ares de celebridades, de pop stars. A plateia já os conhece bem: um é poeta e budista, o outro tem dores na coluna e pavio curto, há aquele que, premido pelos prazos processuais, não corta mais o cabelo, e há também o tal que inventa neologismos jurídicos (“gestão tenebrosa”). Hoje, um brasileiro médio, que não tem a menor ideia do nome do vice-prefeito de sua cidade, é capaz de reconhecer na rua um ministro do Supremo. Nunca um julgamento da nossa mais alta corte foi seguido com tanto apetite, de forma tão eletrizante. Estamos mergulhados num frisson judicante, em clima de reality show. O país anda de fato diferente.

Há quem não goste, claro. O deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP) declarou há poucos dias, sem citar nomes, que “um ou outro” ministro do STF vem adotando um comportamento por demais “midiático”. Em tese, o parlamentar petista até que teria razão. Juiz de direito não é para ficar por aí se exibindo em colunas sociais. No caso específico, porém, devemos abrir uma exceção às normas rígidas da etiqueta dos tribunais e admitir que, embora não seja ortodoxo, é bom, ou melhor, é ótimo que os ministros do Supremo estejam o tempo todo ao alcance dos olhos da nação. Apesar do efei­to colateral - esse estrelismo um tanto fora de termos -, a visibilidade lhes cai bem: a sociedade entende melhor o julgamento do mensalão à medida que conhece a personalidade dos juizes.

É bem verdade que o clima de badalação às vezes incomo­da. Suas excelências, de tão festejadas, começaram a angariar admiradores, aos milhões. Mais um pouco, os ministros mais populares correm o risco de ver inaugurar fãs clubes em seus nomes. O Supremo é visto com mais simpatia, com mais leveza, o que vem reabilitando a imagem do Poder Judiciário, que andava combalida.

Você mesmo, se prestar atenção, vai verificar por sua própria conta. O país é outro. Antes, existiam apenas duas torcidas organizadas: a que quer mandar todos os réus do mensalão para a cadeia e aquela que diz que foi “só” caixa dois e, portanto, ninguém precisa ser condenado. Agora, surge uma nova força. Ganha corpo uma terceira legião de torce­dores, que aposta que os ministros, absolvendo uns e conde­nando outros, convencerão o Brasil de que foi feita justiça.

Essa crença nos ministros do Supremo, embora tenha uma cara de tietagem, está rejuvenescendo a face do país. O Judiciário é visto como um pronto-socorro da democracia ferida. Nasce aí essa torcida difusa que aposta na sabedoria dos ministros. Se, nos campeonatos de futebol, o Brasil assume as feições de uma pátria de chuteiras, agora, à medida que avança o julgamento do mensalão, vamos assumindo o aspecto de uma pátria togada.

Já que estamos nesse meio campo entre as celebridades meritíssimas e suas torcidas, vamos levar um pouco mais longe a comparação entre o STF e o mundo insondável do futebol. É uma analogia perigosa, traiçoeira, mas não há de ser nociva. Ao contrário, ela pode nos ajudar a entender melhor o ânimo que vai se disseminando pelo país.

Imagine que a corrupção no futebol não fosse praticada apenas pelos cartolas, como tem sido. Imagine que os jo­gadores em campo também se dedicas­sem a “gestões tenebrosas”, e no meio da partida. Imagine que, dentro dos 90 minutos regulamentares, o capitão de um time subornasse o goleiro adversá­rio, tirando da sunga um maço de di­nheiro que surrupiou da bilheteria, com o apoio dos dois times. Selado o acordo espúrio, os futebolistas, em vez de jogar bola, passariam a encenar gois fajutos para fraudar o resul­tado e levar um “por fora”.

O que aconteceria? Os torcedores provavelmente senti­riam nojo, mas, antes de desistir de seu amor pelo esporte, talvez depositassem suas esperanças (últimas) no árbitro, cobrando dele uma dignidade superior à dos atletas, uma altivez que desse conta de salvar não o jogo, mas as regras que permitem que exista o jogo.

Claro: num estádio, essa situação seria apenas absurda - ou um teatro do absurdo. No país real, é exatamente isso o que se passa. A torcida a favor das meritíssimas celebridades espera que elas tenham a coragem de punir os culpados e restaurar nossa confiança nas regras do jogo. Os ministros do Supremo, agora promovidos ao estrelato, têm a chan­ce de fazer deste país diferente um país melhor. Não por vaidade, mas por dever.

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