segunda-feira, agosto 27, 2012

O país dos elefantes - REVISTA ÉPOCA


REVISTA ÉPOCA

JOSÉ FUCS


As greves que pararam o país e os supersalários do funcionalismo público colocaram na agenda o problema da remuneração do setor público. Já estava na hora

Um elefante incomoda muita gente. Dois elefantes incomodam, incomodam muito mais. Quando são gordos, movimentam-se com dificuldade. E, quando param no meio do caminho, impedem que os outros sigam em frente. Gigante e ineficiente, o estado brasileiro é frequentemente comparado a um elefante. Talvez o paralelo mais correto fosse compará-lo não com um, dois, três ou quatro, mas com uma manada inteira, cujo peso se fez sentir, em toda a sua portentosa tonelagem, nas últimas semanas.
Primeiro, na maior onda de greves de funcionários públicos desde que o Partido dos Trabalhadores assumiu o poder, em 2003 - os elefantes que param no meio do caminho e impedem que o país siga em frente. Extremamente bem tratados no governo Lula, quando ganharam aumentos salariais bem acima dos obtidos pelos trabalhadores da iniciativa privada (leia o quadro na página 52), os servidores se tornaram pesados demais para o país carregar. A ponto de o próprio Lula ter reconhecido isso publicamente, apoiando a presidente Dilma Rousseff em seu esforço para enfrentar as greves. Embora algumas categorias ligadas ao Executivo federal, em especial os professores, não tenham recebido aumentos tão polpudos na era Lula, a maioria não tem do que reclamar (leia a reportagem na página 54). Segundo, na grita dos sindicatos ligados ao setor público – e na enxurrada de ações judiciais que eles promoveram - para tentar evitar a divulgação dos salários nominais do funcionalismo. Esses são os elefantes gordos. As ações conseguiram travar a abertura dos vencimentos de funcionários de várias categorias, como no caso dos servidores do Congresso Nacional. Outras categorias não ofereceram resistência à medida ou foram derrotadas em seus pleitos na Justiça, com base na Lei da Transparência, em vigor desde maio. Entre as listas divulgadas em todo o país, uma das mais controvertidas foi a que revelou os maiores salários pagos pelo governo do Estado de São Paulo, objeto da reportagem que começa na página 56. A reportagem é a primeira de uma série que ÉPOCA inicia nesta semana sobre os supersalários pagos nos três Poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - e nas três instâncias de governo - federal, estadual e municipal.
Os dois fatos - a controvérsia sobre a divulgação nominal dos salários e a paralisação do funcionalismo - revelam a urgência de o país realizar uma discussão séria sobre o assunto. A indignação causada pelos supersalários acabou contribuindo para aumentar a consciência da sociedade em relação ao problema, além de fortalecer a posição do governo nas negociações com os grevistas. “O governo criou uma armadilha, pagando altos salários, que é difícil desmontar”, afirma o economista Raul Velloso, especializado no estudo das contas públicas. O debate, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, é complexo e não se resume a uma simples caça aos marajás, para usar uma expressão que se popularizou no país no fim dos anos
1980. Um exemplo dessa complexidade são os salários recebidos pelos funcionários de alto escalão do governo federal. De acordo com a Constituição, nenhum servidor poderia ganhar mais que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) - eles recebem R$ 26.723,13 por mês, o mesmo valor que Dilma. 
Só que os ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Miriam Belchior, do Planejamento, ganham mais do que ela. Em junho, graças à verba que recebem por participar dos Conselhos de Administração da Petrobras e da BR Distribuidora (R$ 8.246,71 e R$ 8.232,74, respectivamente), eles conseguiram turbinar para R$ 43.202,58 os salários a que teriam direito como ministros, igual ao de Dilma e dos ministros do STF. O raciocínio vale também para secretários estaduais, como Andrea Calabi, responsável pela pasta da Fazenda no governo de São Paulo. Embora seu salário nominal bruto seja de R$ 14.980, Calabi alavancou seus vencimentos para R$ 82.156,04 em julho, graças às participações nos Conselhos de Administração de seis estatais paulistas - prática que, a partir de agora, não poderá mais se repetir. “Ele (secretário) pode participar de quantos Conselhos a lei determina, mas só pode receber por até dois Conselhos. Além disso, o bônus por resultados não será pago mais para conselheiros”, afirma o governador Geraldo Alckmin.
Será que é justo os ministros ganharem mais que a presidente da República ou secretários de Estado receberem mais que o governador? A resposta imediata seria não. Agora, será que cargos como ministro e secretário de Estado não merecem salários à altura da altíssima responsabilidade que carregam? Talvez seja o caso de considerar o que seus titulares ganhariam se ocupassem posições de liderança na iniciativa privada. “Há muita hipocrisia nessa questão”, afirma Nelson Marconi, ex-diretor de carreiras e remuneração do Ministério do Planejamento e coordenador do curso de graduação em economia da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Muita gente acredita que, mesmo ocupando um cargo de confiança, o sujeito tem de ganhar um salário baixinho.”
Outro exemplo da complexidade do assunto vem do Legislativo. Um garagista da Câmara Municipal de São Paulo, que trabalha como assessor parlamentar e há seis anos não aparece na garagem, ganha R$ 23.206,96 por mês - 2,5 vezes o salário do presidente da Casa, José Police Neto, de R$ 9.288,05. A repercussão do caso, divulgado no mês passado, ultrapassou as fronteiras do país. A revista britânica The Economist publicou uma reportagem sobre o tema, com o título “Shaming the unshamable” (Envergonhando o invergonhável) e o subtítulo “Como os burocratas roubam os contribuintes”. “O prefeito Gilberto Kassab brinca que, quando terminar seu mandato, procurará um emprego como garagista na Câmara”, escreveu a Economist. Aqui, cabe a pergunta: é justo quem paga impostos bancar salários para os servidores muito maiores do que a média de mercado? A resposta também seria claramente negativa. “Muita gente no setor público tem um salário incompatível com suas atribuições”, diz Marconi.
Talvez um ponto para iniciar a discussão seja: como adequar os salários dos funcionários públicos ao mundo real do trabalho sem que isso implique o fim dos tetos salariais existentes nas diferentes instâncias de poder, que funciona como uma espécie de seguro contra o ímpeto gastador do Estado? É até possível que, para isso acontecer, chegue-se à conclusão de que seria necessário aumentar os tetos atuais. Seria possível promover o reajuste do teto, mas respeitando a Constituição, impedindo os demais servidores de receber benefícios por fora - manobras que transformam o teto em peça de ficção e estimulam ações semelhantes em instâncias inferiores.
Há também um aspecto importante que transcende os números. Muitas vezes, para definir o aumento salarial de um funcionário, conta mais o tempo de serviço do que o mérito de cada um. É justo isso? Como é possível melhorar a qualidade do serviço público se os funcionários já sabem por antecipação que, ao completar um determinado tempo de serviço, ganharão um aumento? Não seria mais justo uma remuneração baseada em desempenho? Na área de educação, seria possível aferir se o professor é eficiente em transmitir conhecimento ou se tem trabalhos relevantes publicados em revistas científicas brasileiras e estrangeiras. Mas isso não acontece. Recentemente, chamou a atenção o caso de uma professora do curso de Direito da Universidade Federal do ceará que recebe um salário bruto de R$ 59.109,86, o mais alto do país em sua área. O caso é uma aberração, embora ela embolse R$ 18.624,32 líquidos, em razão de um recurso conhecido como “abate-teto”, que impede o pagamento de valores superiores ao teto estipulado para o cargo. Se há algo que o Estado brasileiro não conseguiu fazer até hoje, é criar uma estrutura que premie quem merece. Eis uma lição a aprender com os países que implantaram a meritocracia no funcionalismo público, como Cingapura, ou empresas privadas, na qual a avaliação de desempenho está impregnada na cultura e no dia a dia de seus trabalhadores e executivos.
Todas essas discussões partem da questão da transparência. Elas surgem quando se examinam os ganhos dos servidores, cuja divulgação foi tão contestada pelos sindicalistas brasileiros. A mudança de atitude do poder público em relação às informações, cristalizada na Lei da Transparência, é um grande avanço e representa uma transformação radical na cultura de sigilo que imperava no país até pouco tempo atrás. Certamente, a nova lei contribuirá de forma decisiva para moldar a gestão pública daqui para frente, além de ajudar a conter a corrupção. 
“A transparência funciona como inibidor eficiente de todos os maus usos do dinheiro público”, disse a presidente Dilma Rousseff. Ela patrocinou o envio da nova lei ao Congresso Nacional e trabalhou para remover as resistências dos parlamentares a sua aprovação e implementação.
A rigor, o texto da nova lei não prevê explicitamente a divulgação nominal dos salários e dos benefícios dos servidores. Essa divulgação foi definida apenas na regulamentação da medida, por parte do governo, para todos os órgãos ligados ao Executivo federal - exceto no caso das estatais de capital aberto, que devem seguir as normas fixadas pela Comissão de Valores Mobiliários. A determinação do governo federal acabou estabelecendo um padrão nacional de qualidade para a divulgação dos dados, que permite a abertura da “caixa-preta” dos salários do funcionalismo e começa a contagiar de forma progressiva o setor público do país como um todo.
Falta muito, porém, para atingir a transparência desejável. Ao contrário do governo federal, que publica os dados salariais do funcionalismo na internet num formato que permite ao cidadão organizar a tabela segundo diferentes critérios - nome, salário bruto, salário líquido etc. -, vários Estados, como São Paulo, que até passaram a divulgar nominalmente os salários de seus servidores na rede, dificultam a manipulação das informações. O governo federal também não divulgou os dados dos aposentados. “Cabe à sociedade exigir as informações dos órgãos públicos, em qualquer instância e de qualquer poder”, afirma Mário Spinelli, secretário de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas da Controladoria-Geral da União (CGU), responsável pela divulgação dos dados do governo federal.
A discussão sobre o assunto é urgente, até porque o teto do funcionalismo, um fator essencial para se controlar o peso da manada de elefantes no país, está em xeque. Durante o “recesso branco” dos parlamentares, no mês passado, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que acaba com o teto salarial dos servidores públicos não apenas da União, mas também dos Estados e municípios. Em vez de uma medida que poderia diminuir as distorções em relação à iniciativa privada, a PEC parece ser uma manobra para tornar os supersalários mais aceitáveis. Considerada pelo governo como “um grande retrocesso”, ela transfere da Presidência da República ao Congresso o poder de determinar o maior salário pago pela administração pública no país e vincula os salários de deputados e Senadores aos vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O projeto ainda precisa ser votado em dois turnos pelo plenário da Câmara, antes de ser analisado pelo Senado. “Foi uma primeira votação, mas a mudança seria significativa, e, por isso mesmo, espero que não avance”, afirma a ministra Miriam Belchior. Ainda há muita resistência ao fim das benesses proporcionadas aos servidores públicos no Brasil. “A Lei da Transparência representa uma evolução da sociedade brasileira, mas não é em um ou dois meses que essa mudança se consolidará”, diz o economista Nelson Marconi. Trata-se de uma transformação cultural de longo prazo, que envolve um aprendizado de cidadania - em que o contribuinte deve zelar pela eficiência de sua contribuição, e o servidor público deve colocar sua missão acima da voracidade por salários e benefícios fora da realidade de mercado.

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