segunda-feira, agosto 13, 2012

O amadurecimento da democracia brasileira - FERNANDO ABRUCIO

REVISTA ÉPOCA

A discussão, a investigação e o julgamento do mensalão revelam um amadurecimento da democracia. Parece contradição com a crise institucional e moral que muitos enxergam neste que já foi qualificado como o maior crime de corrupção de nossa história. Mas o enfrentamento do problema, com a possibilidade de debate amplo, inclusive por meio de escrutínio eleitoral, redundou agora num julgamento que permite a apresentação dos argumentos das partes de forma transparente. A maior novidade, portanto, não é o escândalo em si, mas a maneira como ele tem sido tratado pelas instituições políticas do país.

Nossa história, marcada por períodos autoritários ou oligárquicos, não é pródiga no combate à corrup­ção. Classificar o mensalão como o maior dos escân­dalos é uma ignorância histórica ou uma posição de ideologia partidária estreita. Com o que se gastou em obras públicas no regime militar, num período em que o poder político era opaco, é difícil que não tenha havido corrupção maior que a atual. Basta vi­sitar a Transamazônica, quase uma estrada fantasma. Quantos bilhões foram gastos por lá? O total deixaria PC Farias e Marcos Valério ruborizados...

A novidade é a capacidade das instituições brasi­leiras de iluminar e descobrir irregularidades, rou­balheiras e afins. O mensalão foi primeiramente denunciado na imprensa. Três CPIs trataram, de um modo ou de outro, do caso. A Polícia Federal e o Ministério Público também atuaram. Ao final, o Supremo Tribunal Federal (STF) levou sete anos para encerrar a investigação, num processo que en­volveu uma gama enorme de ações. Tente relembrar uma história de corrupção que tenha passado por um processo tão complexo, com um espaço mais que razoável para o contraditório e o debate.

Podem ter havido erros investigatórios, além de o argumento da acusação poder também ter fragilidades. O controle público é feito por seres humanos, por natureza sujeitos a falhas. Mas não se pode dizer que tudo tenha sido inventado. Os primeiros a negar isso são os próprios acusados, que, ao admitir finan­ciamento ilegal de campanha, revelam que recursos públicos foram usados para pagar partidos e políti­cos nas eleições municipais de 2004. Isso é um crime grave contra a democracia. Não começou com este episódio, mas é ele que está em questão.


O julgamento final caberá ao STF. Mas parte da­quilo que, em inglês, é chamado de accountability (algo como “responsabilização”) já foi alcançada. Não houve, em nenhum momento, censura à apre­sentação e à discussão dos fatos. Alguns poderão reclamar de abusos ou ilações em parte da mídia. O cientista político Fernando Filgueiras, da Universi­dade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou, em trabalho recente, que, ao mesmo tempo que os cida­dãos se tornam mais críticos em relação à corrupção, também têm aumentado sua percepção de que a imprensa muitas vezes é parcial em suas coberturas. Mas manter a liberdade ampla de opinião permitiu ao povo brasileiro construir sua visão sobre a vera­cidade e o significado do mensalão. Deixar o jogo da informação o mais livre pos­sível é sempre o melhor remédio.

A eficácia do processo ainda pode ser medida pelo grau de liberdade que teve o Ministério Público Federal. Não resisto a ci­tar a máxima lulista: nunca antes na história deste país um pre­sidente escolheu procuradores- gerais tão independentes para investigar o próprio grupo dirigente. Lula poderia ter feito diferente. Tinha até popularidade e, no segundo mandato, maioria política para optar por uma outra linha. Mas não o fez. Com exceção de um caso, selecionou nomes para o STF com autonomia sobre os quadros político-partidários. Não sei se muitos governantes das principais democracias seguiriam tal caminho.

O mensalão já foi objeto de debate e escrutínio eleitoral, principalmente em 2006, algo que se repe­tiu em menor medida em 2010. Muitos dirão que as urnas comprovaram que o povo acha que nada acon­teceu - ou nada de importante. Tenho uma leitura diferente. A maioria dos envolvidos no episódio foi castigada pelas urnas. O que fez o eleitorado manter o lulismo forte não foi apenas seu sucesso econômico e social. No mesmo momento em que os petistas e aliados eram pegos com a boca na botija, também se descobriu que o valerioduto fora inventado pelos tucanos mineiros. Isso reduziu o impacto do discurso moralista e mostrou que nenhuma das forças políticas relevantes do país era formada por santos. Outras questões foram mais decisivas na hora do voto.

Uma das maiores falhas do processo foi descolar os dois mensalões do ponto de vista judicial. Do mesmo modo que os envolvidos no caso envolvendo petistas e aliados serão julgados pelo STF, isso deveria se re­petir com o congênere tucano. Mas o balanço geral é extremamente positivo. Confusões e controvérsias decerto ocorreram e ocorrerão, mas num grau que não afetou o amadurecimento da democracia brasileira. A decisão dos ministros do STF é a peça fi­nal da história. Ela não poderá ser julgada de forma maniqueísta - boa se todos forem amplamente condenados ou ruim se isso não acontecer. É provável que o veredito fique no meio do caminho. Quanto aos capítulos da novela já apresentados, diz- se muito, de um lado, que a fala do procurador Gurgel foi cristalina e certeira, enquanto, de outro lado, muitos apontam a fragilidade das provas, sobretudo a ausência de materialidade contra alguns (como José Dirceu) ou o uso de instrumentos testemunhais mal elaborados e retirados de seu contexto. O melhor de tudo é poder presenciar que o contraditório está ga­rantido de forma transparente e ampla, comprovando que o Brasil avançou muito em sua trajetória. É assim que se constrói a accountability democrática, num país que quase nunca a teve.

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