quinta-feira, julho 19, 2012

Deixar pela metade é um risco - CÉSAR FELÍCIO


Valor Econômico - 19/07


No dia 8 de julho, o jornal "Clarín", que trava uma guerra contra a presidente argentina Cristina Kirchner, publicou uma notícia banal, pouco relevante dentro do manancial de textos invariavelmente negativos que faz contra o governo. Tratava-se de uma reportagem em que um empresário do setor imobiliário e dois operários se queixavam do desaquecimento econômico aprofundado por uma série de controles cambiais introduzidos no país.

O empresário, Jorge Toselli, relatou que seus negócios mensais caíram de 15 para dois depois das restrições às compras de dólar. Pelo twitter, Toselli socializou a publicação e se declarou "muito contente". Uma semana depois, em seu perfil no "Facebook", o corretor imobiliário divulgava orações. No decorrer deste tempo, Toselli havia se tornado um exemplo de como anda a política na Argentina atual.

Três dias depois da publicação no Clarín, em uma cadeia nacional de rádio e TV, Cristina usou quatro dos 37 minutos de seu discurso para destruir a reputação de Toselli. Depois de citar que buscou informações sobre a empresa no órgão da receita federal local, a AFIP, Cristina expôs ao país que o empresário crítico não apresentava declarações de renda há cinco anos. No dia seguinte, a imobiliária não existia mais: teve o seu equivalente ao CNPJ suspenso.

O monopólio da informação como arma do poder

Para que fique claro: do ponto de vista legal, a presidente argentina não cometeu crime algum. Divulgar que uma empresa não apresenta declarações não é uma violação do sigilo fiscal na Argentina, de acordo com o artigo 101 da lei 11.683, que trata do assunto. A mesma lei determina a suspensão do cadastro da pessoa jurídica depois de três anos sem prestar contas ao fisco.

Revelador no episódio foi o uso da informação como arma, no sentido quase literal da palavra, e a falta de limites em colocar o peso do Estado contra uma voz destoante. Nesta estratégia de intimidação, que leva dirigentes de entidades empresariais a conversarem com jornalistas somente depois de recolhidos gravadores e canetas, o kirchnerismo acusador também oculta.

Na Argentina, todas as normas para aquisição de divisas estrangeiras foram revolucionadas nos últimos meses. Um novo documento passou a ser exigido dos importadores e travou as compras externas do país, sem que qualquer funcionário tenha explicado as razões de seus atos seja à imprensa ou ao Congresso, a não ser em entrevistas ao chamado "jornalismo militante". As exceções à regra foram as mudanças que tiveram que passar pelo exame do legislativo, como a expropriação da petroleira YPF e o novo marco regulatório do Banco Central.

A mudança nos critérios de cálculo da inflação no INDEC, o IBGE local (faça-se justiça que é uma das raras autarquias que concede entrevistas a meios independentes) tornou a Argentina o paraíso dos consultores e comentaristas profissionais de economia e ergueu um universo paralelo: no país existe a inflação oficial e a extra-oficial, o crescimento do PIB anunciado pela Casa Rosada e o número consideravelmente menor com que trabalham os agentes econômicos, o índice de pobreza do governo e o das ONGs.

Com o passar do tempo, a escuridão se alastra. Desde 18 de dezembro de 2011, não é mais possível monitorar a execução orçamentária em dados desagregados. Ficou difícil saber, por exemplo, o resultado fiscal da Argentina.

"Nem mesmo ao Congresso é possível ter acesso a informações como qual o gasto público com determinado programa e como são alocados os recursos para os diversos municípios e províncias (estados). As licitações são públicas, mas as execuções dos contratos, vedadas a qualquer organismo que possa exercer controle", diz Luciana Diaz Frers, diretora de Política Fiscal do CIPPEC, uma ONG que tenta acompanhar os gastos públicos no país, e economista de tendência oposta ao kirchnerismo.

O monopólio da informação no país manieta a oposição, incapaz de elaborar propostas baseadas em dados consistentes. Torna-se, como diz Luciana, um trabalho às cegas. É o oposto do que ocorreu no país, quando o marido e antecessor de Cristina, Nestor Kirchner, chegou ao poder, em 2003. Na ocasião, Kirchner promulgou um decreto de acesso à informação e criou um escritório anticorrupção.

"Ele havia assumido a Presidência debilitado por uma votação muito baixa naquela eleição e necessitava se legitimar. O aumento da transparência lançou uma ponte com a sociedade civil", disse o deputado Manuel Garrido, que foi chefe do órgão anticorrupção do governo até março de 2009, quando passou para a oposição. Hoje pertence à União Cívica Radical (UCR).

A norma de 2003, ainda em vigor, permite a qualquer argentino ter acesso às declarações de renda de todos os funcionários públicos de carreiras exclusivas do Estado. Na Argentina, é um universo de 30 mil pessoas. Basta preencher um formulário on-line e retirar as declarações em uma repartição pública, assinando um termo de responsabilidade.

Cristina não ousou alterar esta regra. Por meio dela, tornou-se público que a presidente mantinha aplicações em moeda estrangeira de US$ 3,5 milhões, recentemente convertidas para pesos. Mas a regra vale apenas para os servidores do Executivo e a transparência parou por aí.

"Faltou garantir o acesso às informações dos outros poderes e fortalecer os mecanismos de controle sobre o Executivo. Tudo ficou no meio do caminho a partir do momento em que o kirchnerismo foi se fortalecendo", comenta Garrido.

O Brasil chegou muito mais tarde que a Argentina a um marco legal de transparência sobre os salários do funcionalismo, ainda que de uma forma mais ampla, ao incluir os três poderes. Seria interessante institucionalizá-lo rapidamente para evitar os retrocessos na transparência pública que marcaram os anos recentes do kirchnerismo.

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