quinta-feira, maio 17, 2012

Contra o Estado-anunciante - EUGÊNIO BUCCI


O ESTADÃO - 17/05


No México, os meios de comunicação estão se vendendo - e se rendendo - à força do governo. O diagnóstico é de Rubén Aguilar, professor e jornalista mexicano que foi porta-voz da Presidência da República de seu país entre 2002 e 2006 (governo Vicente Fox). "Tudo está à venda", disse ele durante sua palestra no seminário Meios de Comunicação e Democracia na América Latina, realizado no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, no final da tarde de terça-feira. E arrematou: "Só o que se discute é o preço".

No México descrito por Aguilar, a tensão entre a imprensa e o poder, que é natural e desejável nos regimes democráticos, tende a desaparecer para dar lugar a uma relação de troca negocial, um toma lá, dá cá em que os governantes ganham poder (com o apoio dos veículos jornalísticos) e os empresários do setor ganham dinheiro (tendo no Estado um anunciante camarada). Assim, enquanto uns faturam votos e outros faturam lucros, a sociedade perde: a fiscalização do poder some de cena e a imprensa se converte em mercadoria política.

Diante desse cenário, o ex-porta-voz foi coerente e se declarou contrário ao uso de verbas públicas no mercado publicitário. O Estado, quando se converte em anunciante, passa a constranger, seduzir, cercear ou mesmo chantagear órgãos de imprensa, não necessariamente nessa ordem. O jornalismo investigativo perde fôlego - e a democracia, também.

Na abertura do mesmo seminário, Bernardo Sorj, diretor do Centro Edelstein de Pesquisa Social, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador do livro Meios de Comunicação e Democracia: Além do Estado e do Mercado (publicado no ano passado pelo Centro Edelstein), tocou no mesmo ponto. Para ele, devemos considerar a necessidade de impor limites ao crescente investimento de dinheiro público em propaganda de governo. Aos que defendem a publicidade governamental com o tortuoso sofisma de que ela jogaria recursos em pequenos jornais e emissoras, contribuindo assim para a "diversidade" no debate público, Bernardo Sorj argumenta, corretamente, que, se for esse o objetivo, o Estado deveria abrir linhas de financiamento público, a partir de critérios democráticos, impessoais e transparentes. Essa seria a política adequada para apoiar veículos menores e fortalecer a pluralidade e a concorrência saudável.

Aos poucos, ainda que tardiamente, vai nascendo entre nós a percepção de que a publicidade governamental distorce, deforma e degrada o debate público. Ela, que sempre foi uma unanimidade entre os agentes políticos - basta ver que, no Brasil e em todos os países da América Latina, os governos anunciam cada vez mais, qualquer que seja o partido do mandatário -, começa finalmente a ser descrita como problema para os observadores mais críticos.

Já era tempo. Aqui mesmo, neste mesmo espaço, esse problema já foi denunciado mais de uma vez: o que existe hoje nas nossas democracias ainda precárias é uma simbiose promíscua entre Estado e meios de comunicação privados, gerando um ecossistema com o qual é muito difícil romper.

No Brasil, a prática avança numa progressão de enrubescer o erário. Na primeira década do século 21 será difícil encontrar, na administração pública brasileira, uma rubrica orçamentária que tenha crescido mais.

Comecemos pela Prefeitura de São Paulo: num intervalo de seis anos, o montante jogado em publicidade oficial praticamente decuplicou, saltando de R$ 12 milhões em 2005 para R$ 108 milhões em 2010. Na cidade do Rio de Janeiro, a evolução foi ainda mais estonteante: em 2009, ao menos de acordo com os dados oficiais, a soma aplicada em publicidade da prefeitura ficou na casa de R$ 0,47 milhão e, em 2011, o total alcançou a cifra de R$ 74 milhões. O governo estadual do Rio de Janeiro passou de R$ 70 milhões em 2005 para R$ 172,5 milhões em 2011. No governo federal, conforme cifras divulgadas no site da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, a Secom, os gastos da administração direta e indireta (contando, portanto, com as empresas estatais) vêm oscilando em torno da marca do bilhão de reais. No ano de 2009 houve um pico: R$ 1,7 bilhão. Também em 2009, o governo paulista alcançou um ápice de R$ 314,6 milhões, ante apenas R$ 33 milhões em 2003.

A que se destinam tantas fortunas? Elas não geram ambulatórios, não criam vagas nas escolas públicas, não abrem um só quilômetro de metrô, não aumentam o efetivo policial, não melhoram as estradas, nada disso. Nem sequer informação elas oferecem à sociedade. Só o que essa dinheirama produz é fetiche: uma boa imagem - imagem mercadológica - para aqueles que governam. É bom observar, a propósito, que a linguagem, a estética e a forma narrativa da propaganda oficial são idênticas - são as mesmas - às adotadas pelos filmetes partidários exibidos no horário eleitoral. A propaganda governamental é o prolongamento escancarado da propaganda eleitoral - e vice-versa. Ao contrário do que dizem os governantes, não sem cinismo, essas peças de comunicação não informam coisa alguma - apenas contam lorotas publicitárias.

O pior, o mais grave de tudo, é que elas esvaziam a independência dos órgãos jornalísticos de pequeno e de médio porte. Dizem as autoridades da comunicação oficial que, distribuindo seus milhões para os pequenos, os governos fortalecem os jornais locais ou "alternativos". É mentira. A verba pública transformada em verba anunciante nos jornais e nas emissoras locais produz neles uma dependência mortal. O dinheiro público entra pela porta e a independência crítica é expulsa pela janela. Também por isso, a figura novíssima e abrutalhada do Estado-anunciante só enfraquece a democracia.

Têm razão Rubén Aguilar e Bernardo Sorj. Mas que político terá coragem de romper com o ecossistema?

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