segunda-feira, abril 23, 2012

A segunda morte do caixeiro-viajante - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 23/04/12


"Fiquei pasmo" - escreveu com horror presciente um intelectual alemão em 1932, depois de assistir a uma apresentação da obra de Bertolt Brecht e Kurt Weill, A Ópera dos Três Vinténs, uma peça cheia de desprezo pela classe média - "ao ver a plateia de classe média, que tinha perdido completamente a noção da própria situação, aplaudindo uma peça na qual ela era ridicularizada e atacada com uma virulência vingativa."

Senti algo parecido com essa inquietante ironia ao assistir a uma apresentação de A Morte do Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller, atualmente em cartaz na Broadway, estrelada por um eletrizante Philip Seymour Hoffman como Willy Loman, vendedor ambulante de 63 anos que vive o colapso nervoso mais famoso da literatura americana. Eis uma peça na qual o sonho de seguranças e certezas da classe média é destroçado. Ainda assim, a plateia, composta por pessoas bem-sucedidas, estava se divertindo bastante.

Bem, talvez o público americano tenha se distanciado totalmente dessa querida peça americana.

Muitos anos depois de escrever o Caixeiro, Miller disse em sua autobiografia que esperava que a peça fosse como uma "bomba-relógio sob o capitalismo... ou, ao menos, sob a baboseira do capitalismo, esta pseudo vida que acreditava ser capaz de tocar as nuvens ficando de pé em cima da geladeira, acenando para a Lua com uma hipoteca quitada nas mãos, finalmente vitoriosa". Miller ficou em êxtase ao saber que, depois de assistir à peça, Bernard Gimbel, proprietário de uma das maiores lojas de departamentos dos Estados Unidos da época, deu ordem para que nenhum de seus empregados fosse demitido por ser velho demais - o destino de Willy, demitido por seu jovem chefe num dos momentos mais comoventes da peça.

Longe de ser uma bomba-relógio sob o capitalismo, A Morte do Caixeiro-Viajante se tornou uma distinta instituição nacional. Desde sua primeira produção, em 1949, a peça se tornou um elemento básico do currículo do ensino médio e superior nos Estados Unidos, sendo também uma escolha comum para os projetos de teatro de escolas e universidades. Perguntas a respeito da peça chegam até a constar no teste padronizado que usamos para medir a aptidão dos alunos para a universidade. A assimilação confortável de valores artísticos subversivos por parte da sociedade comercial é coisa antiga. Mas, ao deixar o teatro naquela noite, perguntei a mim mesmo se, nesse caso, tamanho conforto na assimilação não seria consequência do fato de os valores artísticos de Miller terem se tornado tão distorcidos e pervertidos.

Miller escreveu a respeito da "baboseira do capitalismo" quase 40 anos depois de ter criado a peça. Mas, na peça em si, ele não demonstra nada além de empatia e compaixão diante da crença de Willy no meio de vida que escolheu.

Fundamentalmente, o que Willy deseja é, nas palavras do próprio personagem, ser "lembrado e amado e ajudado por tantas pessoas diferentes", enquanto viaja pelo Nordeste dos EUA vendendo suas mercadorias - jamais especificadas. Ele sente falta de seus primeiros anos como vendedor, quando "havia personalidade no trabalho... havia respeito, camaradagem e gratidão na atividade", diz ele. Agora, aos 63 anos, numa era diferente, a venda se tornou impessoal, as pessoas ficaram como as commodities que vendem e as relações humanas passaram a ser calculadas e transitórias. Quando Willy e o filho, Biff, de quem era afastado, se abraçam no fim da peça - "engasgados de amor", como indicam as instruções de Miller para a montagem do texto -, muitas pessoas que fizeram parte das primeiras plateias da peça perderam o controle e choraram.

Na apresentação que vi, ninguém chorou. Quando a cortina se fechou e as luzes se acenderam, as pessoas saíram com pressa, sem se abalar.

O motivo disso é simples. As primeiras plateias que viram a peça eram formadas principalmente por pessoas de classe média que partilhavam dos valores de Willy. Eram vendedores ou vendedoras, ou pessoas que trabalhavam num dos muitos reinos humildes do capitalismo de meados do século 20. Como Willy, elas acreditavam que poderiam alcançar a dignidade por meio do trabalho. Reconheceram a própria vivência na percepção de Willy de que a vida é mais do que o sonho de seguranças e certezas da classe média. Mas elas ainda valorizavam aquele sonho da classe média; ainda acreditavam na classe média. E isso não era tudo. Elas tinham dinheiro para ir ao teatro quando o teatro ainda era uma diversão da classe média.

O público que assistiu comigo à peça naquela noite pagou em média US$ 300 por ingresso. Eram pessoas que tinham deixado a classe média para trás havia muito tempo. Para elas, Willy era um perdedor iludido cujos sonhos de classe média eram tão corruptos quanto o sistema que os nutriu. Para Miller, Willy era um digno herói da vida comum cujos sonhos de classe média enchiam de vergonha o sistema que os traíra.

A fúria de Miller diante de um sistema capitalista que ele buscava humanizar se convertera na cínica adaptação da minha plateia a um sistema capitalista que ela desprezava, mas sabia como manipular. Aos olhos daquele público, a aspiração de Willy de ser "lembrado e amado e ajudado por tantas pessoas diferentes" estava abaixo do desprezo. O importante é vencer, conseguir, embolsar tanto quanto for possível e rir durante todo o percurso até o banco. A compaixão de Miller por Willy era a prova de sua indignação diante dos excessos do capitalismo, alicerçada nas suas convicções. O elegante desdém da minha plateia em relação ao capitalismo incluía um desprezo profundo por qualquer um que, como Willy, jogasse pelas regras e tentasse encontrar alguma humanidade dentro daquele sistema.

Não surpreende que A Morte do Caixeiro-Viajante tenha se tornado uma obra tão querida. Em vez de despertar no público a humildade por meio do choque do reconhecimento, ela agora confere à plateia uma ilusão de superioridade. Poderíamos até dizer que, enquanto A Morte do Caixeiro-Viajante consolidava seu prestígio como denúncia das ilusões da classe média, a classe média americana - entendida como conjunto de valores admiráveis - quase desapareceu.

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