domingo, abril 29, 2012

Redimidos - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

O GLOBO - 29/04/12


Quando o grampo telefônico e a mini-câmera escondida ainda não eram instrumentos de denúncia e moralização, o político corrupto podia contar com uma certa tolerância tácita dos seus pares e do público. Mesmo quando não havia dúvidas quanto à sua corrupção, havia a disposição de perdoá-lo, até de folclorizá-lo – e o político que roubava mas fazia tinha o privilégio do artista, de ser um canalha em particular se sua obra o redimisse. Uma única gravura do Picasso absolve uma vida de mau caráter. A obra do Marquês de Sade é estudada com a mesma isenção moral dedicada à obra de Santo Agostinho – que nem sempre foi santo – e ninguém quer saber se o escritor engana o fisco ou bate na mãe se seus livros são bons. Ou querer saber, queremos, mas só pelo valor de fuxico. A absolvição custa um pouco mais quando o pecado do artista é o da ideologia errada. Pois se se admitia no político a perversão privada do artista, a única inconveniência intolerável no artista era a incorreção política. Assim um Louis-Ferdinand Céline e um Wilson Simonal tiveram que esperar a remissão que o tempo acabou dando a Kipling, Claudel, Nelson Rodrigues, Jean Genet, etc. Mas a receberam.

O político que declaradamente roubava mas se redimia fazendo tinha um pouco desta imunidade de artista. Sua obra justificava seus pecados, quando não era uma decorrência deles. Todo o sistema de conveniências e deixa-pra-laismo que domina o Congresso brasileiro e que está sendo testado agora presume a mesma desconexão entre moral privada e moral aparente. A cultura do clientelismo, onde o suposto proveito político substitui a ética, está baseado nela. O que causou a atual revolta contra a roubalheira e a tolerância com a corrupção no Brasil, além das modernas técnicas de averiguação, é a constatação crescente de que aqui não se tem nem a ética nem o proveito, rouba-se para poucos e não se faz para a maioria. Em cleptocracias mais avançadas a obra dos artistas do desenvolvimento, todos bandidos, redimiu-os. Empresários corruptores e políticos corruptos fizeram dos Estados Unidos, por exemplo, o que eles são hoje. O capitalismo selvagem americano domou a si mesmo depois de construir um país, ou controlou-se razoavelmente, mas nos seus tempos desinibidos escandalizaria até o Cachoeira. Aqui tem-se o crime mas ainda não se tem o país.

PALAVRAS AVULSAS

O “rude e doloroso” idioma de Bilac é falado por mais gente do que o francês, mas temos razões para nos queixar da sua relativa obscuridade. Ao contrário da Espanha, que perdeu seu império americano mas deixou um imenso mercado para o García Márquez e o Vargas Llosa, Portugal não foi muito pródigo com a sua língua. Seus navegadores, catequizadores e comerciantes apenas largaram palavras avulsas pelos caminhos da sua exploração do mundo, como pepitas raras. Até hoje na Costa Ocidental da África usam a palavra “dash” para gorjeta. Vem do português “deixar”, como em “Vou deixar uns trocados para você, ó mameluco!”. No Japão, o prato de camarão com legumes fritos chamado “tempura” tem este nome por causa dos portugueses que só comiam peixe durante os “Quattuor Tempora”, ou Quatro Tempos, de cinzas e contrição, do ano litúrgico. O “mandarim” chinês vem de “mandar” mesmo, combinada com o sânscrito “mantrin”, ou conselheiro. Algumas palavras portuguesas andaram pelo mundo e voltaram com seu sentido mudado. “Casta”, substantivo, camada social, vem do português “casta”, adjetivo. “Fetishe” começou a vida como feitiço. E o “joss” do chinês pidgin, significando ídolo, é uma corruptela do “Deus” chiado dos portugueses.

Enfim, não é muito mas é nosso.

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