segunda-feira, abril 09, 2012

Número demais - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA


A revista The Economist tomou algum tempo atrás uma decisão muito interessante: decidiu que não iria mais publicar nenhum número oficial fornecido pelas autoridades econômicas da Argentina. O motivo é que não dá para acreditar, há anos, em quase nenhum dado que vem do governo argentino. Seus números são patentemente suspeitos, ou incoerentes, ou incompreensíveis – ou pura e simplesmente falsos. Publicar para quê, se no fundo é tudo mentira? Para a Argentina, obviamente, tanto faz. Seus governantes vão continuar fabricando e divulgando as cifras que bem entenderem, sem a mais remota preocupação com o fato de que a revista inglesa não acredita neles; é duvidoso, por sinal, que estejam interessados em saber se os próprios argentinos acreditam ou não naquilo que dizem. Os jornalistas da Economist, de qualquer forma, deixam de perder seu tempo tentando encontrar algum nexo nos dados econômicos da presidente Cristina Kirchner. Toda a imprensa mundial, na verdade, talvez fizesse um bom negócio se deixasse de dar tanta atenção às cifras econômicas que saem de dentro dos governos, da Argentina e de muito país levado a sério por este planeta afora. É, realmente, um mundo de trevas. Se Dante resolvesse acrescentar mais um círculo aos nove que colocou no inferno de sua Divina Comédia, é possível que esse décimo patamar ficasse reservado às estatísticas oficiais.

O Brasil, felizmente, parece que não tem, com os seus dados oficiais, problemas equivalentes aos da Argentina. Mas teria, com certeza, um bom lugarzinho reservado na fornalha infernal mencionada aí acima. Quem, fora do governo, ou mesmo dentro dele, consegue desembaralhar a numeralha que Brasília faz desabar quase todo dia, sem dó nem piedade, em cima deste país? Não dá. Os números saídos do governo misturam dinheiro que ainda não existe com dinheiro que já não existe mais. Somam parafuso com mandioca e obtêm, no total, sandália havaiana. Desafiam a matemática de Euclides. Podem revogar a regra de três e a prova dos noves, ou transformar raiz quadrada em raiz redonda. Sabe-se da existência, na matemática, dos números irracionais; parecem ser os preferidos dos nossos burocratas. Há uma confusão contínua de verbas federais que reencarnam como estaduais ou municipais – ou fazem a viagem ao contrário, ou, então, transitam de um lugar para outro sem que se saiba nunca onde realmente estão, ou sequer se existem. O bom-senso, em todo esse processo, acaba sempre ficando como "opção inválida". Pascal em pessoa, se lhe jogassem em cima a maçaroca de cifras usinadas pelo governo, iria esquentar a cabeça por um tempo e, ao fim, diria algo assim: "Quer saber? Não entendi nada desse negócio aqui".

Essa confusão toda, naturalmente, não é neutra. Tira-se grande proveito dela, e não é preciso chamar nenhum prêmio Nobel para deduzir que o grande beneficiário da confusão é quem a produz – o próprio governo. Uma das suas ferramentas preferidas é o PAC, esse monumento de classe mundial na arte de engambelar o público com números oficiais. Num artigo recente na Folha de S.Paulo, e para ficar num exemplo só entre dezenas de outros, o senador Aécio Neves observou que o PAC inclui, como investimento do governo, 75 bilhões de reais devidos ao financiamento de imóveis. Em português claro, isso quer dizer o seguinte: o dinheiro que o cidadão está tirando do próprio bolso, para pagar as prestações do imóvel que comprou, é contado em Brasília como verba aplicada pelo governo em obras do PAC. O resultado é um angu mental em que se ouve muita gente boa dizer, por exemplo: "Uma coisa não se pode negar: o governo está investindo um colosso em habitação. Nisso a Dilma é craque". O que sobra, no nevoeiro fechado das cifras que vêm lá de cima, é a impressão de que o governo não sabe o que está falando, a imprensa não sabe o que está publicando e, a população não sabe o que está acontecendo. E o Brasil para todos.

Nós estamos num estado comparável apenas à Grécia: a mesma pobreza, a mesma indignidade política, a mesma trapalhada econômica, a mesma baixeza de carácter, a mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se fala de um país caótico e que, pela sua decadência progressiva, poderá vir a ser riscado do mapa da Europa, citam-se, em paralelo, a Grécia e Portugal.

Quem escreveu as linhas acima foi Eça de Queiroz. Data de publicação: 1872, em As Farpas. Gênio, entre outras coisas, é isso: está quase sempre com a razão, mesmo 140 anos depois.

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