domingo, abril 01, 2012

Causa Nóbrega - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 01/04/12


Seduzido pela cultura popular brasileira, o multi-instrumentista Antonio Nóbrega funda companhia de dança e protagoniza filme

Antonio Nóbrega em números: 60 anos de idade, 40 de carreira, 20 de Instituto Brincante, espaço de cultura e dança popular. Patrocínio de R$ 1,25 milhão da Petrobras. Três bandolins, três violões, 18 rabecas e oito violinos. Dois filhos, uma neta.

É pouco.

A história do instrumentista, dançarino e pesquisador da cultura brasileira é de multiplicação.

A paixão pela cultura de raiz o levou aos palcos e ao altar. Influenciou a carreira profissional dos filhos e de amigos dos filhos. E o alimenta como artista e intelectual até hoje.

"Minha cachaça é o Brasil. Troco partida de futebol e mesa de bar por uma leitura sobre a cultura popular", diz à repórter Thais Bilenky. "Faz 40 anos que me envolvo com puxantes de caboclinhos, brincantes de cavalo-marinho, batedores de alfaia e maracatu. Em algum momento, minha vida triscou em algo, viu e prendeu com muita força. E tem o poder de me alimentar desde então."

O artista está fundando uma companhia de dança que vai funcionar em seu instituto, na Vila Madalena. Prepara um espetáculo em homenagem a Luiz Gonzaga. E criou coreografias para um filme sobre sua trajetória que está sendo dirigido por Walter Carvalho.

Nóbrega toca violino, bandolim, violão, pandeiro, clarinete e saxofone. É coreógrafo e bailarino. Pesquisa e ensina. Seus últimos espetáculos -o mais recente, "Naturalmente", entrou em cartaz em 2009- foram aulas-show, em que interrompe números de dança para explicar o que apresenta. São, como diz, "performances entremeadas por canto e instrumentos conciliados com falas e depoimentos".

"Ele anda mais introspectivo", diz o filho, Gabriel, 28. "Tá se vestindo de maneira mais sóbria, a estética dos espetáculos está mais sóbria. Acho que ele entrou numa fase síntese da carreira."

O cineasta Walter Carvalho usa a mesma palavra, "síntese". O filme sobre o artista, "Brincante", sai no fim do ano, com patrocínio de

R$ 600 mil da Petrobras. É o quarto trabalho que Carvalho e Nóbrega fazem juntos. Já assinaram antes três DVDs.

"Na minha cabeça, ele é uma síntese do Brasil. Um cara que bebe na fonte do popular e do erudito e tira disso uma leitura que é dele. É um caso profundo de dedicação consigo mesmo, compreende?", diz o diretor.

Pela primeira vez tocará seus projetos sozinho. Sua filha, Maria Eugenia, 25, e a nora, Marina Abib, 24, que dançam em seus espetáculos há seis anos, fundaram a Companhia Soma e vão passar temporada na Europa. A mulher, Rosane Almeida, atriz e bailarina com quem trabalha desde que se conheceram, vai tocar um projeto paralelo. E o filho, Gabriel, que tocou percussão em sua banda desde que tinha dez anos, agora está no mercado publicitário.

"Estou crescidinho para caminhar com minhas próprias pernas." Maria Eugenia acha que fará bem ao pai se livrar dos "pitacos" da família. "São bons pitacos. Devo muito a elas", responde ele.

Há três décadas ainda morava no Recife, onde nasceu. Tinha 29 anos. Já dançava e tocava. Foi ver o show de um contorcionista. Zangou-se: "Trabalho todo dia com o corpo e não consigo fazer um décimo do que ele faz".

A menina de 17 anos que estava sentada atrás dele escutou e achou graça. Um ano depois, se casaram. Começaram a trabalhar juntos. Faziam um espetáculo em que ele atuava e dançava. Ela contracenava mascarada ou fazendo a voz de bonecos.

Dez anos mais tarde, fundaram o Instituto Brincante, espaço de ensino de manifestações artísticas na Vila Madalena, bairro paulistano onde moram.

Para o longa Nóbrega contratou 20 bailarinos -por coincidência, quase todos paulistanos da periferia. Eles se encontraram nos últimos seis meses de 2011 três vezes por semana. Ensaiavam coreografias criadas para o filme. "Deu certo demais. Não tive nenhum atrito com um único bailarino."

Dez desses bailarinos foram herdados pela recém-fundada Antonio Nóbrega Companhia de Dança, cujos ensaios começaram no final de março. Daqui a um ano, saem em turnê de 20 apresentações. Nóbrega terá R$ 650 mil da Petrobras para usar em dois anos.

No meio tempo o artista apresenta o espetáculo em homenagem a Gonzaga. E haja pesquisa. "Ele gravou 1.660 vezes as suas músicas, algumas mais de uma vez. Tem entre 600 e 700 gravações originais. Das 200 que eu conheço, já está sendo difícil selecionar as que vou utilizar." O show deverá acontecer em setembro, no Auditório Ibirapuera.

Nóbrega é metódico. Se não estiver viajando, acorda às 7h e faz 40 minutos de exercícios físicos enquanto assiste ao noticiário na TV. Toma café da manhã, um mingau de aveia que ele mesmo prepara há 25 anos. E dedica as manhãs aos estudos. "Se alguém interrompe, fica muito irritado", diz Gabriel.

"As pessoas perguntam como consigo ser tão disciplinado. Eu digo, rapaz, para mim o difícil é ser indisciplinado. Eu não leio um livro só, não leio três somente. Eu leio seis ao mesmo tempo. A minha natureza é assim, não dá para mudá-la mais."

Fez faculdade de letras, direito e música. Não concluiu nenhuma. "Tive formação muito boa. Meu avô [Manuel da Nóbrega] era um homem preocupado com os destinos do homem. Eu, um cara de 14 anos, me vi confidente intelectual dele. Tinha uma biblioteca extraordinária e escreveu livros maravilhosos." Busca na prateleira. "Ó os nomes, se quiser anotar: 'Demagogia Política e Religiosa', 'Vade Mecum do Pensador' e 'Realidades desse Mundo e Problemas do Outro'."

Aos 18 anos, conheceu o dramaturgo Ariano Suassuna, determinante em seu mergulho profissional. "Ficava ouvindo as conversas e aquilo ia me enchendo de informação, aguçando minha curiosidade. Se me aparece uma coisa muito pouco estudada, muito fértil, eu digo: Acho que eu vou é aprofundar. Senti esse chamado."

Sua casa no Recife sofria enchentes com frequência. Nóbrega deixava a chuva levar tudo -menos os livros. Até hoje guarda alguns com marca de água. Diverte-se ao lembrar de um alagamento que ocorreu quando tinha 24 anos: "Saí de casa com um papagaio numa mão e um violino na outra".

Apaixonado pelo violino, sim. O erudito pelo erudito, não. "É meio esquisito que a gente tenha numa cidade como São Paulo mais de dez orquestras sinfônicas mantidas por empresas ou instituições públicas e não tenha sequer um grupo de choro mantido por qualquer instituição."

Nóbrega defende "um Brasil que juntou, teve uma mestiçagem racial e cultural popular. As tradições culturais têm riquezas que não percebemos. Tô muito atento para encontrar conteúdos e valores que, se a gente consegue aprender e colocar na dinâmica da vida contemporânea, porra, acho que a vida moderna seria melhor".

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