sábado, março 03, 2012

O desmonte do Estado de Direito - MARIO CESAR FLORES


O Estado de S.Paulo - 03/03/12


O artigo 42 da Constituição brasileira diz que "os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados (...)". Esse preceito é complementado pelo parágrafo 1.º do mesmo artigo, que estende aos militares dos Estados as disposições do parágrafo 3.º do artigo 142, relativas aos militares das Forças Armadas, cujo inciso IV afirma que "ao militar são proibidas a sindicalização e a greve". As paralisações de policiais militares, conduzidas por associações que driblam a proibição constitucional da sindicalização, não podem, portanto, ser entendidas juridicamente como greves. São motins travestidos de greve, inconcebíveis num Estado de Direito - o que, salvo uma ou outra exceção, não tem obstado ser o término das greves-motins negociado (!) entre sublevados e autoridades, comumente com a rendição, ao menos parcial, à pressão ilegal. Curiosamente, a mídia insiste em chamar de greve a paralisação de policiais e bombeiros militares, dando ao que é explicitamente inconstitucional a ilusão semântica de constitucionalidade.

Em junho de 2011 o Rio de Janeiro viveu um drama dessa natureza: o motim de seus bombeiros militares, por aumento salarial. Aumento, em princípio, de fato conveniente, embora discutível quanto ao equilíbrio entre o nível pretendido e o possível; errado foi procurá-lo via ilegalidade agressiva à ordem e à margem do canal hierárquico. A receptividade, aparentemente simpática, do governador do Estado do Rio de Janeiro das decisões da Assembleia Legislativa fluminense e do Congresso Nacional, que inibiram, respectivamente, as punições administrativas e penais de amotinados, não foi exatamente uma sinalização de alerta contra esse tipo de descalabro...

Episódio mais grave: a greve-motim da Polícia Militar da Bahia em fevereiro deste ano vem conferindo à questão uma tonalidade dramática, com a disseminação de violência e criminalidade - saques, assaltos, furtos, roubos e assassinatos -, de que o povo e a vida societária são vítimas. No caso baiano, transpareceu o desconforto da autoridade executiva, marcada por passado sindical com apoio a greves, de se contrapor ao descalabro usando o peso do rigor legal. A afirmação do governador de que não haveria punição para quem não tivesse praticado vandalismo aparenta sugerir que ato ilegal - no caso, a greve-motim - não está sujeito a punição corretiva, por mais que tenha prejudicado o povo, quando não acompanhado por violência explícita. Pode não ter sido essa a intenção, mas deixou a impressão.

Além do aspecto legal: não é lógico aceitar serem socialmente legítimas as greves-motins de policiais e bombeiros militares. É, no mínimo, discutível que, sob a retórica tolerante pretendida como democracia, se permita que minorias organizadas, vivendo em razoável (ao menos no cenário brasileiro) segurança social, protegidas por vantagens não estendidas ao trabalhador não público, sujeitem o povo a sacrifícios transformados em instrumento de pressão sobre o Estado na barganha por reivindicações, em geral, indiferentes à responsabilidade fiscal. Detalhe insólito: nas greves-motins, naturalmente propensas a atos contrários à ordem, a culpa pelas consequências de eventuais enfrentamentos é atribuída por seus atores às forças da ordem - invadir, ocupar e bloquear seriam ações lícitas, recompor a ordem seria violência. Um líder dos ocupantes da Assembleia Legislativa da Bahia deixou claro na TV que se as forças federais tentassem a restauração da ordem as consequências seriam da responsabilidade de quem a tivesse determinado. Os atores da desordem seriam inocentes...

Circunstâncias como as manifestas na Bahia podem chegar à conveniência de se considerar - prudentemente, mas com coragem cívica à altura do problema - a hipótese do estado de defesa, previsto no artigo136 da Constituição "para preservar ou prontamente restabelecer (...) a ordem pública ou a paz social (...)". Ou do estado de sítio (dependente de autorização do Congresso), previsto no artigo 137 para o caso de "comoção grave de repercussão nacional (...)" onde o governo estadual constitucionalmente responsável não consegue manter a ordem, por insuficiência de meios ou por inapetência de viés sindical ou eleitoreiro. Em ultima análise, e de conformidade com o inciso III do artigo 34 da Constituição, podem sugerir até mesmo a intervenção federal para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública".

Esse quadro confuso nos leva a aventar a contragosto algo contrário à nossa tradição e à nossa cultura: a revisão da condição militar dos policiais e bombeiros, por eles vilipendiada. Os alicerces dessa condição, a hierarquia e a disciplina, têm de ser respeitados para preservar a sua virtude, indispensável à segurança das instituições e do povo diante do poder armado. Se o "ânimo" dos policiais e a pusilanimidade nacional acharem dispensável esse respeito, então a dúvida começa a ter algum infeliz cabimento.

Imaginemos o caos nacional caso a tolerância com o desapreço pela condição militar se estendesse às Forças Armadas, se a tropa do Exército em serviço policial na Bahia declarasse que só cumpriria o seu dever se a sua remuneração fosse revista - e as Forças Armadas fossem incluídas na PEC 300, cuja referência, a remuneração da Polícia Militar do Distrito Federal, é encargo da União...! O despautério seria justa e compreensivelmente inaceitável. Mas para a Polícia Militar é tolerável?

A continuar a prática inconstitucional, e se o paroxismo policial militar vier a se entender pelo Brasil afora, em conluio hostil ao povo e ao Estado - como já se estendeu, sensacionalista, traumático e perigoso, ao Rio de Janeiro -, estaremos caminhando para o desmonte do Estado democrático de Direito, posto à mercê do corporativismo de categorias fortes do setor público - com o provável consequente crescimento da sedução do salvacionismo, no povo refém e vítima...

Nenhum comentário: