segunda-feira, março 12, 2012

Domingão no parque em 1310 - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 12/03/12

Uma das coisas que mais me espantam é o encanto que muita gente alimenta pelos hereges medievais, associado à quase total ignorância sobre suas heresias. Confundem-se manias "teenagers" com heresias sérias.
Faça uma "regressão para vidas passadas" em alguém e verá que ela foi uma bruxa queimada na Idade Média ou algo semelhante. E ela acha isso chique porque pensa nessa "bruxa" queimando sutiã em Paris no século 14.
Não conheço ninguém que tenha sido uma aborígene insignificante (sem querer ofender os aborígenes, é claro, trata-se de uma cultura sem a qual o mundo não sobreviveria).
Coitadas dessas "bruxas". Para começar, pelo menos no universo entre o que chamamos hoje de França, Bélgica, Holanda e Alemanha (região do rio Reno), entre os séculos 13 e 15, essas mulheres não se diziam bruxas, mas sim cristãs puríssimas.

O famoso livro "Martelo das Bruxas" (Malleus Maleficarum, para os íntimos), escrito no século 15, era um manual para "lidar" com essas cristãs "béguines" (termo sem tradução decente em português porque chamá-las de "beatas" é maldade).
Quando você ouvir alguém se referir a essas mulheres como "bruxas", tenha certeza que ele não sabe do que está falando. Caras como os que escreveram o "Malleus" é que chamavam essas mulheres de bruxas. Elas falavam de Deus, de caridade, de amor, de conhecimento "direto de Deus" e seus desdobramentos (aqui residia o principal problema). A partir do século 17, mais ou menos, passamos a chamar essas mulheres de místicas.
Anos atrás, comecei a pesquisar alguns textos dessas místicas medievais. Interessava-me o fato de que muitas delas tinham sido consideradas hereges.
Entre 1994 e 2003, entre Paris e Marburg (Alemanha), me dediquei a duas delas mais cuidadosamente, Marguerite Porete e Mechthild-von-Magdeburg.
A primeira foi queimada como herege em 11 de junho de 1310, em Paris, place de la Grève (reza a lenda que não deu um pio enquanto ardia na fogueira). A segunda morreu uma morte razoavelmente tranquila em alguma data desconhecida entre 1282 e 1294, num mosteiro, apesar de ter passado por apuros com a Inquisição e de ter sido ajudada, pelo que parece, por um amigo ou primo abade poderoso da região.

O título do livro queimado com a Porete é "Le Miroir des Simples Âmes Anéantis" (o espelho das almas simples e nadificadas). Já o da alemã que escapou do pior é "Das fliessende Licht der Gottheit" (a luz fluente da deidade).
Ambos trazem a marca dos excessos dessa escola mística chamada de renana: elas e Deus são da mesma substância, de onde se deduz, entre outras coisas, que elas não precisavam seguir códigos morais exteriores como os que não sabiam o que elas sabiam.

Elas ("almas liberadas", "nadas divinos") eram sem "matéria de criatura", logo, Deus. A Igreja e (quase) todo mundo via nisso simples soberba desmedida.
A esse "erro de doutrina", o Concílio de Viena de 1313, sobre essas "béguines", chamou de "confusão de substâncias".
Se recuperarmos o que nos diz o grande historiador Huizinga em seu "Outono da Idade Media" (ed. Cosac Naify), a execução desses hereges era um "domingão no parque".
As famílias iam com seu ovo duro, suas músicas prediletas (estou fazendo uma adaptação irônica do texto de Huizinga aos dias atuais), seus cachorros, e faziam tai chi enquanto esperavam a criminosa chegar. Os homens comparavam seus cavalos ou carroças e as mulheres se vangloriavam, em silêncio, por seus belos seios e belas pernas. As feias, como sempre, ficavam bravas com o sorriso seguro das mais graciosas.
Mas o melhor mesmo era o interesse das crianças e os tomates podres que seus pais davam para elas para que brincassem de jogá-los nos hereges. Alguns pais se emocionavam com a precisão de alguns de seus pequenos príncipes.
Herege, hoje, é chique, mas lá, você estaria jogando pedra nela como numa "Geni". Você a veria como se vê hoje um pedófilo, um reacionário, um capitalista porco, enfim, um desgraçado, uma prostituta, que todo mundo diz que é "bonitinha", mas todo mundo detesta (menos os consumidores).

Um comentário:

Sheila Nunes disse...

Novamente, Pondé nos remete à democracia e sua falácia: 50% mais 1 e os outros 49% que engulam a “maioria” esmagadora.

Comparações, vanglórias, ovos duros, “brincar” de jogar tomates podres e seus filhos. Nossos filhos. Damos ovos duros e tomates podres aos nossos filhos e nos orgulhamos da precisão de alguns deles. Vivemos e reproduzimos um mundo, como máquina copiadora, sem qualquer consideração pelo próximo. Sem respeito pelas diferenças. Ora bolas, se a pessoa se julga “alma liberada”, sem “matéria de criatura”, “logo, Deus”, por que o desconforto, o preconceito, o julgamento, a sentença: “joga pedra na Geni”? E fazemos disso parque de diversão pra “amenizarmos” nosso desamor.

É o que fazemos e reproduzimos em nossos filhos. Chegamos às pessoas e imoralmente, queremos que creiam, pensem e ajam como nós, com se fôssemos os donos da verdade e não queremos nos dar ao amor de olhar o outro e aceitá-lo como é. Como uma leitura diferente daquilo que somos, como código genético diferente, particular e por isso mesmo, raro, único, ímpar.

Leio como sinto. Um texto que me convida à reflexão do quão intolerante e arrogante sou.

Gratíssima,
Sheila Nunes