quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Um projeto de morte - MARIA HELENA MAUAD

O ESTADÃO - 01/02/12

Nós que fazemos parte da sociedade consciente assistimos, estarrecidos, ao que hoje acontece na cracolândia. Uma situação cruel, pior que as geradas por guerras. Um cenário desumano, de corpos machucados, olhares vazios, instintos grotescos, pois é tudo por uma pedra.

Impossível não acionar a memória e buscar explicações.

Naturalmente, existem várias delas, mas uma me vem de imediato à lembrança: quando nossos congressistas fizeram o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), apoiados pelos Poderes Executivo e Judiciário,esqueceram que estávamos fazendo leis para o Brasil, uma terra ainda de tupiniquins e de rincões com pobreza extrema, como recentemente bem definiu a presidente Dilma Rousseff.

Quando o governo, além de tentar interferir no chamado Sistema S (Senai, Senac, Sesi, Sebrae e outras instituições ou organizações do setor produtivo), proíbe que menores de 16 anos entrem no mercado formal de trabalho, está atirando esses adolescentes para a famigerada cracolândia e similares, verdadeiros vales de desalento onde o que mais impera, fora o tráfico, é a omissão. É muito bonito dizer que lugar de criança é na escola ou brincando - algo legítimo da infância sadia. Mas o que dizer de escolas tão distantes que seus alunos têm de andar quilômetros a pé para lá chegar? Assistimos, pela televisão, a entrevistas com menores de 13 anos que traficam na cracolândia.

O que impressiona é ver que jornalistas conseguem localizá-los, mas o poder público, não.O que nos leva à triste dedução de que este prefere ignorar a tomar uma atitude.

Sabemos que a adolescência é uma fase difícil da vida, repleta de dúvidas e questionamentos, negações e revoltas. Conforme o tipo de ambiente familiar, principalmente os marcados pela violência e pela ignorância, muitos jovens encontram nas drogas uma resposta, quer como usuários, quer como ganha-pão.

Se procurarmos na História do País, veremos que grandes nomes começaram a trabalhar muito cedo e nenhum se sentiu explorado.

Fizeram carreiras belíssimas com ética, honestidade e honra. São pessoas que deram as bases ao País. Os exemplos são muitos de meninos e meninas que, como ascensoristas, mensageiros, etc., acabaram se tornando grandes juristas, presidentes de empresas ou federações, entre outros postos de relevo.

Até quando assistiremos a isso? Como presidente do Projeto Ampliar, programa de responsabilidade social que há 21 anos profissionaliza adolescentes em situação de risco, com o suporte logístico do Secovi-SP, Sindicato da Habitação, a chancela do Senai e apoio de várias empresas e empresários, posso dar testemunho do que vivencio.

Os cursos que oferecemos no Ampliar - o qual chamamos de "um projeto de vida" - são gratuitos, com apostilas, lanche, uniforme e uma condição: frequentar a escola regular. Todos os que ingressam voluntariamente no projeto buscam se profissionalizar com um objetivo muito claro: trabalhar o mais rápido possível para ajudar a família e também custear a sonhada universidade.

Ou seja, eles despertam para o estudo, almejam capacitar-se para atuar no mercado formal de trabalho, seja como funcionários com carteira assinada, seja como empreendedores de seus próprios negócios.

Há 21 anos, quando o Ampliar começou numa comunidade carente na zona sul (a Favela 7 de Setembro), os alunos inscreviam-se aos 12 anos. As mães estimulavam (melhor que estar na rua à mercê do crime organizado), pois aos 14 anos de idade eles já podiam entrar no mercado de trabalho. Quando o governo proibiu isso, restaram poucas possibilidades aos jovens menos favorecidos dessa faixa etária.

Muitos terminaram por ingressar no mercado marginal de trabalho. Com necessidades objetivas, como comer e vestir, com a cabeça vazia de ideias construtivas, mas cheia de desejos e vontades, matricularam-se com facilidade na escola do crime.

Tornaram-se "funcionários" de traficantes cruéis ou passaram a dividir a sarjeta e o cachimbo nas cracolândias, que proliferam, ignorados pela sociedade, assim como até então fez o poder público, para não enfrentar o problema.

Pode-se dizer que, tempo depois, o governo tentou compensar isso com a Lei da Aprendizagem (10.097/2000), que determina que empresas de médio e grande porte contratem jovens de 14 a 24 anos para capacitação profissional, cumprindo cotas que variam de 5% a 15% do número de funcionários efetivos qualificados.

Na prática, porém, os resultados são pífios. Burocracia, exigências como ter um profissional habilitado ao lado de cada aprendiz (em tempo integral) e incidência de encargos sociais inibem o cumprimento da lei. E continuamos na mesma: impedido de ocupar produtivamente o seu tempo, contingente expressivo de jovens se perde na vida.

Muitas das crianças que hoje estão no mundo das drogas são recuperáveis. Tratadas, poderiam voltar à escola, completar o ensino com cursos profissionalizantes e, a partir dos 14 anos, atuar no mercado de trabalho como aprendizes.

Não cabe aqui julgar se a ação policial na cracolândia está ou não correta. As opiniões são díspares.

Talvez não seja a melhor forma, mas, de alguma maneira, algo está sendo feito.O assunto ganhou as manchetes e cutucou as autoridades. Cada foto ou reportagem faz a sociedade sair da zona de conforto e refletir: por que não foram adotadas ações mais concretas quando eram cem, não milhares, permitindo que esse mal crescesse tanto? Diversas vezes vi meninos de 14 anos extremamente esforçados que, não podendo trabalhar, iam à escola de manhã, ao Ampliar à tarde e, à noite, vendiam balas e salgadinhos no farol para levar algum dinheiro para casa.

Se isso não é exploração infantil, o que será? Pudesse o Ampliar ter iniciado profissionalmente esses meninosde12anos, talvez o problema da cracolândia fosse um pouco menor. Afinal, trata-se de um projeto de vida, não de morte.

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