segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Mediocridade política global - MARCELO DE PAIVA ABREU

O ESTADÃO - 06/02/12


Muita tinta foi gasta recentemente na imprensa mundial com foco nas pretensas virtudes do "capitalismo de Estado" sobre o capitalismo "tout court". Há clara tendência a minimizar as enormes dificuldades de estabelecer, sob o capitalismo de Estado, os checks and balances (freios e contrapesos) adequados para evitar distorções grotescas. Sob o capitalismo com menos Estado, ao menos em tese é possível regular a atividade econômica - dada a vontade política.

A crise financeira atual decorreu, em escala global, de inapetência, ou incompetência, política em regular a economia e, especificamente, o sistema financeiro. De qualquer forma, capitalismo de Estado depende crucialmente da capacidade política de seus líderes. É irônico, mas o melhor exemplo de sucesso é o da China, país que inevitavelmente terá de enfrentar os custos de transição para um sistema político multipartidário, sabe-se lá com que custos. Pode-se ter certeza de que a solução da atual crise não será via capitalismo de Estado. O que se requer é capacidade de coordenação de políticas e de negociação de custos e benefícios.

A constelação dos atuais líderes políticos das grandes democracias é quase constrangedora, mesmo com a ausência de Silvio Berlusconi: Sarkozy, Merkel, Cameron, mesmo Obama, não parecem compor um conjunto notável de políticos capazes de trabalhar de forma consistente para minorar as consequências globais da crise. E não é que as oposições sejam lideradas por políticos com programas alternativos responsáveis e críveis. Hollande ou Le Pen, na França, Miliband no Reino Unido, e Gabriel, na Alemanha, compõem elenco de reservas bem desanimador. Para não falar em Mitt Romney e Newt Gingrich, alternativas a Barack Obama. A exceção importante neste quadro é Mario Monti, com a árdua tarefa de minorar as lambanças do regime de "bunga bunga".

É um quadro político que tem o seu paralelismo com a tripulação de líderes do final da década de 1920, que demonstrou ser incapaz de conter os estragos da grande depressão. O britânico Malcom MacDonald, pouco inspirador, promoveu a saída da libra do padrão ouro, mas é lembrado antes de tudo por sua traição ao Labour Party. Entre a saída de Poincaré, em 1929, e 1932, a França, agarrada ao padrão ouro, teve seis primeiros ministros, sem contar repetições... Brüning, chanceler alemão em 1930-1932, tentou enfrentar a crise com medidas ortodoxas. Não é exagero afirmar que foram os desempregados de Brüning que votaram no nacional-socialismo e viabilizaram a ascensão de Hitler. A "solução" alemã, bem-sucedida economicamente, foi desastrosa no longo prazo. Nos EUA, o presidente Hoover, republicano, teve desempenho semelhante a Brüning. Roosevelt, que em 1933 abandonou o padrão ouro e equacionou a crise bancária, foi o único político entre os grandes protagonistas que superou a mediocridade. Mas, como demonstraria na Conferência Econômica Mundial de 1933, atribuía importância quase nula à coordenação internacional de políticas econômicas.

É possível vislumbrar resquícios de Brüning na atual política alemã quanto à crise do euro. É claro que garantir a responsabilidade fiscal dos membros da zona do euro é essencial para que Angela Merkel mobilize apoio político interno para que a Alemanha lidere o resgate da orla mediterrânea gastadora. Mas é ingênuo pensar que possa ser exercido controle direto de finanças de países-membros fora do quadro de redefinição das atribuições fiscais nacionais e de Bruxelas. Algumas das propostas ventiladas recentemente para a Grécia fazem lembrar o controle financeiro anglo-francês do Egito no final do século 19. O grande desafio é como compatibilizar o rearranjo fiscal com os interesses divergentes de países europeus na zona do euro e fora dela. A excessiva ênfase de Merkel no lado fiscal tem suscitado reparos. Mario Monti tem insistido que ajuste fiscal desacompanhado de estímulos ao crescimento não tem condições de garantir a reversão da grave crise financeira italiana. Dada a importância do comércio intracomunitário, a sobrevivência do euro depende da reversão das vantagens competitivas alemãs ante a orla mediterrânea. Em prazo mais curto, afrouxamento fiscal na Alemanha. Em prazo mais longo, reformas estruturais nos países menos eficientes. No entretempo, o controle da crise depende do volume dos recursos disponíveis para enfrentar desestabilização adicional e, talvez, da possibilidade de emissão de títulos em euro com garantia supranacional, ou seja, alemã. É mais do que razoável que o contribuinte alemão se pergunte se o saco tem fundo.

O desmonte da zona do euro traria, além de enormes custos políticos, com o primeiro grande retrocesso no processo de integração europeia, grandes custos econômicos, pois certamente seria precedido pelo colapso financeiro dos mediterrâneos.

Vendo a derrocada dos Piigs, é fácil lembrar a frase do bandido Harry Lime, interpretado por Orson Welles no Terceiro Homem, clássico de Carol Reed: a Itália, apesar de guerras e mau governo, produziu Leonardo e Miguel Ângelo, enquanto a Suíça, em 500 anos de democracia e bom governo, produziu o relógio cuco. Cabe aos atuais negociadores mostrar que o dilema entre o relógio cuco e Miguel Ângelo é falso.

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