sexta-feira, fevereiro 10, 2012

A hipocrisia dos “sudestinos” - GLAUCIO SOARES


O GLOBO - 10/02/12

Reunir governadores, políticos, polícias e pesquisadores do Sudeste pode ser o primeiro passo para a formação de uma identidade regional. O crime não é mais um fenômeno estritamente estadual: se regionaliza e se nacionaliza.
Além dos seus objetivos imediatos na luta contra o crime e a violência, também pode ser um passo estratégico na política brasileira a fim de defender os interesses da região.
Na trama complexa da política regional, o Sudeste e o Centro-Oeste lutam contra uma ausência de identidade regional. Não há sudestinos... É cada estado por si e ninguém por todos. E contribui para a debilidade de cada estado. Vejam o comportamento de tantos políticos de outros estados em relação ao pré-sal.
Mas há nordestinos, nortistas e sulistas e essas identidades contam — e muito — seja na retórica política que, dentro e fora do Congresso, influi na distribuição dos recursos públicos, inclusive por recursos destinados a combater o crime, seja na atividade política que assegura que esses fundos realmente sejam usados e não contingenciados.
Políticos e a sociedade construíram uma fortíssima identidade nordestina, uma forte identidade nortista e uma identidade sulista. A construção dessas regiões como blocos que constituem o edifício político foi importante na luta por recursos. A identidade criou uma ideologia da exploração entre regiões. A relevância dessa identidade e dessa ideologia transparece nos discursos no Senado Federal: através de pesquisa no Sicon (Sistema de Informações do Congresso Nacional) localizei 3.780 discursos nos quais se mencionava a Região Nordeste, outros 1.469 nos quais se mencionava a Região Norte, seguidos por 964 discursos nos quais a Região Sul era mencionada, e pela Centro- Oeste, com 637. Na retaguarda, absolutamente distanciada dos demais, a Região Sudeste, com 270 menções.
Para cada menção ao Sudeste, há 14 ao Nordeste. Se levarmos a população em conta, e computarmos as taxas per capita, as desigualdades são gigantescas.
Essas identidades regionais e coletivas não são, apenas, figuras de retórica.
Elas são instrumentos de mobilização política dentro e fora do Congresso, na luta por recursos públicos. Inicialmente, era uma estratégia necessária: um representante de Alagoas ou de Sergipe teria mais chance de obter recursos para seu estado se alinhavasse seu discurso e seu pedido em nome do Nordeste. Porém, fazer reivindicações estaduais em nome do Nordeste era mais do que simples retórica: era e é estratégia política.
Durante mais de um século, foi sendo alinhavada uma estratégia de barganha regional. Hoje, ela é fortíssima.
Durante parte desse período, o Rio de Janeiro, antiga capital, São Paulo, nova e crescente potência econômica, e Minas Gerais, estado integrante obrigatório de qualquer política nacional, seguiam caminhos individualizados, com frequência independentes, às vezes antagônicos. As rivalidades entre cariocas, mineiros e paulistas são divertidas no campo de futebol, mas na política têm um efeito negativo. Historicamente, a localização estrutural variou pouco em São Paulo e Minas, mas o Estado do Rio de Janeiro, que vivia parcialmente na sombra do Distrito Federal, depois Estado da Guanabara, foi esvaziado com a transferência da capital, e o Espírito Santo tinha e tem pouca expressão demográfica e política. Porém, a despeito do crescimento demográfico (em boa parte absorvendo o excedente de outras regiões) e econômico, a participação do Sudeste no Legislativo, particularmente no Senado Federal, decresceu através do tempo. Esse enfraquecimento não promoveu uma união regional, não houve a criação e o crescimento da identidade regional "sudestina": a região continua vivendo o isolacionismo e a pseudoautossuficiência, para enfrentar essas perdas. Os estados do Sudeste viviam e vivem a ilusão do passado.
Cada estado do Sudeste defendia seus interesses e nenhum defendia os interesses da região.
Essa fraqueza teve e tem um preço.
A legislação federal relega a região Sudeste à irrelevância enquanto região.
Apenas 1% da legislação menciona a região, em contraste com 60% de referências à região nordeste. Ao ficar fora da retórica política e do imaginário nacional, o Sudeste como região ficou fora da legislação. Não há como legislar sobre uma região que não existe, nem como beneficiá-la. Por que essa união é necessária? Porque os recursos são escassos.
Porque o setor público brasileiro está falido, financeira e moralmente.
Legisla em benefício próprio. A imensa burocracia federal deixa para a disputa as migalhas, o que sobra.
Nessa disputa, os estados, individualmente, têm pouca força, mesmo os estados fortes. O "estado" brasileiro tem impostos suecos e benefícios africanos. Consome o que extrai da população.
O discurso da exploração das regiões pobres pelas ricas, tão "a gusto" dos ricos das regiões pobres, tem algumas facetas que me incomodam. Primeiro, faltam dados que demonstrem que essa exploração existe; segundo, exime a elite política do Nordeste e do Norte de qualquer responsabilidade, histórica e atual, pelos problemas da região e seus estados.
Exemplificando: a miséria do Maranhão se deve mais à exploração por São Paulo ou a décadas de corrupção e inépcias da sua elite? Se a ambos, em que proporção? Terceiro, as pessoas (da elite e do povo também) têm ou não alguma responsabilidade pelas decisões que tomam ou deixam de tomar, independentemente da região em que vivem? Quarto, os recursos desviados no Sudeste e do Sul vão beneficiar os necessitados das regiões mais pobres, ou a burocracia dessas regiões, ou a burocracia federal, ou a elite e a classe média dessas regiões — e em que proporções? Quid bono? Finalmente, os pobres das regiões ricas, abandonados nesse debate, merecem algum apoio? Há uma hipocrisia que deve ser desmascarada.
Alguns dos atores políticos que brandem a bandeira da exploração do Nordeste e do Norte pelo Sul e pelo Sudeste são riquíssimos e insensíveis à miséria do próprio povo.
É insultante ouvir esse discurso de vítima por parte de políticos latifundiários, que possuem nababescas casas de praia, cujos familiares constantemente viajam ao exterior e são todos insensíveis à miséria que os cerca. Esse discurso se choca com a mais-valia que extraem dos peões que trabalham para eles.
Os "sudestinos" devem se unir para obter recursos federais, que estão minguando, para combater a pobreza e a violência, para reduzir a desigualdade, e os brasileiros devem se unir para garantir que os recursos públicos cheguem às mãos dos mais necessitados e não desapareçam pelos ralos do estado.

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