domingo, janeiro 08, 2012

Rabanada - LUIS FERNANDO VERISSIMO

O ESTADÃO - 08/01/12
Sobrou uma rabanada. Huguinho viu que tinha sobrado uma rabanada e começou sua progressão em direção à mesa. Lentamente, a princípio, para não atrair atenções. Depois acelerando um pouco até ter a rabanada ao alcance da sua mão.

Estendeu a mão e...

– Huguinho!

– Quié, mãe?

– Não toque nessa rabanada.

– Mas, mãe.

– Ofereça para a dona Anita.

– A dona Anita já se encheu de rabanadas.

– E você, quantas comeu?

Huguinho tinha comido 10, mas não era hora de dar munição ao inimigo.

– Duas.

– Não minta. Vá oferecer pra dona Anita.

– Por quê?

– Porque ela é visita. Porque não fica bem alguém da casa comer o último pedaço, seja do que for. Porque a boa educação manda que a pessoa mais velha seja sempre melhor tratada.

– Quantos anos tem a dona Anita?

– Não interessa. Acho que uns 68.

– A dona Anita está comendo rabanadas há 68 anos. Eu, só há 12.

– Pois então? Ela está mais perto da morte. Tem menos tempo do que você para comer rabanadas.

– Mas já comeu muitas mais do que eu.

– Huguinho, pare de embromar e ofereça esta rabanada à dona Anita.

– Não, é sério. E se eu morrer nos próximos dois minutos?

– Só se for de comer tanta rabanada.

– Eu posso muito bem cair morto neste instante. Ou daqui a 20 anos. De qualquer jeito, não terei a oportunidade de me igualar à dona Anita na quantidade de rabanadas consumidas em toda a sua vida.

– Huguinho...

– Eu só quero deixar claro que a proximidade da morte não pode ser critério. Teoricamente, todos aqui podem estar perto da morte. Mas há só uma rabanada.

– Ai, meu Deus. Por que nós fomos botar você numa escola experimental? Qual deveria ser o critério, então?

– Quem chegar à rabanada primeiro. E eu estava chegando.

– Ah é, Huguinho? A lei do mais forte, do mais rápido, do mais oportunista? Onde é que ficam a consideração pelos outros, as boas maneiras, a moral e a ética? Enfim, a civilização?

– Acho que nenhuma forma de civilização resiste a uma última rabanada.

– Você não aprendeu isto nesta casa, Huguinho, e espero que não tenha aprendido na escola. Agora chega de conversa e leve esta... Rabanada! Onde está a rabanada?!

O prato está vazio. Enquanto mãe e filho discutiam, alguém pegou a última rabanada sem ser visto. Fim de conversa.

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