quinta-feira, novembro 10, 2011

FERNANDO REINACH - Sangue no arroz


Sangue no arroz
FERNANDO REINACH
O Estado de S.Paulo - 10/11/11

O sangue é uma mercadoria valiosa, mas que não tem preço. Em muitos países, e no Brasil também, ele não pode ser vendido ou comprado. Quem necessita de sangue e seus derivados depende da boa vontade de doadores voluntários.

Ao longo das últimas décadas, cientistas têm conseguido produzir alguns dos componentes do sangue fora do corpo humano. Fatores de coagulação, utilizados por hemofílicos, já são produzidos por células mantidas em laboratórios. Agora, um grupo de cientistas chineses desenvolveu um método capaz de produzir o principal componente do sangue humano, a albumina, de modo seguro e a um custo muito baixo. Para isso, recrutaram a ajuda do arroz.

A albumina é uma proteína importante. Ela ajuda a manter o sangue nas veias, evitando a migração dos líquidos para os tecidos. Transporta esteroides, hormônios (como os da tireoide) e ácidos graxos. Purificada, ela é usada para tratar queimaduras, hemorragias e doenças, como algumas formas de cirrose hepática. Além disso, a albumina faz parte da composição de diversas vacinas e é utilizada no processo de produção de muitos remédios biológicos.

O mundo consome 500 toneladas de albumina humana por ano. Grande parte dessa montanha de albumina é isolada de bolsas de sangue que não são usadas em transfusões. O sangue doado é processado em grandes fábricas, que separam os diversos componentes. Além da dificuldade de obter a matéria-prima, é muito difícil garantir que a albumina humana não esteja contaminada com vírus como o da hepatite C ou o HIV, causador da aids.

A segurança do produto depende da seleção dos doadores e de métodos sofisticados e caros de purificação. Em 2006, foi descoberto que o aparecimento de um grande número de casos de aids em uma vila no centro da China foi causado por um lote de albumina derivado de amostras de sangue coletadas de maneira ilegal. E logo após o surgimento da aids, um grande número de pessoas foi infectado pelo vírus da aids na França por causa de amostras de sangue contaminadas. A hepatite C ainda hoje se espalha por meio de sangue e derivados contaminados com o vírus.

Com o objetivo de produzir albumina humana em grande escala, livre de qualquer vírus humano, um grupo de pesquisadores chineses inseriu o gene da albumina humana no genoma do arroz. A tecnologia é semelhante à utilizada para produzir a soja resistente aos herbicidas. Para garantir que a albumina humana produzida no arroz se acumulasse nos grãos, os cientistas inseriram com o gene humano segmentos de DNA que fazem com que a albumina seja produzida nas células que formam o grão e seja acumulada no seu interior.

Pureza. Nessa nova linhagem de arroz, 10% de toda a proteína solúvel presente nos grãos é albumina humana. Produzida a linhagem e cultivado o arroz, os chineses desenvolveram um método para purificar a albumina. O resultado final é uma albumina humana com mais de 99% de pureza, livre de qualquer patógeno humano. A albumina produzida em arroz foi amplamente testada e até agora tudo indica que ela é idêntica à isolada do sangue humano.

Esse processo é capaz de produzir 2,75 gramas de albumina por quilo de arroz. Uma plantação de aproximadamente 20 mil hectares desse arroz transgênico seria capaz de produzir as 500 toneladas de albumina humana consumidas por ano. Como hoje são plantados 80 milhões de hectares de arroz todos os anos, a área dedicada à produção de albumina seria insignificante, menos de 0,03% do total.

Se por um lado essa nova tecnologia pode salvar muitas vidas, esse novo produto biotecnológico vai criar polêmica. Será necessário garantir que esse arroz transgênico não se misture ao arroz comestível. Da mesma forma que o arroz dourado (capaz de prevenir a cegueira causada pela falta de vitamina A) ainda enfrenta problemas para ser produzido em larga escala, é de se esperar que o arroz com albumina provoque muita resistência.

Mas o fato é que a tecnologia agora está disponível. Vai caber aos chineses decidir se querem utilizá-la. Nas últimas décadas, a China vem liderando o desenvolvimento e a utilização de plantas geneticamente modificadas. Não se espante se, nos próximos anos, uma grande parte da albumina humana consumida no planeta for produzida em plantações de arroz chinesas.

Mais informações: Large-scale Production of Functional Human Serum Albumin From Transgenic Rice Seeds. Proc. Nat. Acad. SCI., USA DOI 10.1073/PNAS.1109736108, 2011

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