sexta-feira, outubro 14, 2011

MILTON HATOUM - Meu gato e os búlgaros



Meu gato e os búlgaros
MILTON HATOUM
O Estado de S.Paulo - 14/10/11

O leitor talvez conheça o baiacu, ou os sabores desse peixe de água doce e salgada. Eu conheço outro: o Baiacu de Ouro, um prêmio literário que recebi em Manaus, há uns 20 anos.

Um dia alguém me telefonou e deu a notícia. Agradeci com duas palavras e soube, aliviado, que eu não ia fazer um discurso na solenidade da entrega. Minha surpresa maior foi o envelope balofo que recebi junto com o Baiacu. Não era um cheque, era dinheiro mesmo, um monte de notas velhas e amassadas, como se recebe no garimpo. Mas como a inflação naquele ano beirava a obscenidade, a ponto de desmoralizar os brasileiros, meu ânimo arrefeceu. O valor do prêmio era segredo, e este garimpeiro de palavras não ia contar em público o valor do trabalho privado. Tive que ouvir um discurso, que felizmente foi breve, e mesmo brevíssimo, sem firulas e salamaleques. Depois quatro músicos interpretaram o Quarteto n.º 1, de Villa-Lobos.

Eram músicos búlgaros, todos loiros e rosados, e todos usavam um traje a rigor na noite abafada. O envelope gordo não entrava no meu bolso, tive que segurá-lo o tempo todo enquanto ouvia o primeiro movimento do Quarteto do grande compositor. Depois do "Canto Lírico" me entreguei a um devaneio: não fosse a queda do Muro de Berlim, esses virtuosos das cordas não estariam interpretando com esmero "Melancolia" diante de um escritor emocionado, que apalpava um envelope obeso. Esses músicos são a maior contribuição da queda do Muro para o Amazonas, pensei, prestando atenção à harmonia, vendo mãos búlgaras movimentar arcos e beliscar cordas, o suor escorrendo de faces e orelhas do país dos Bálcãs, até gotejar no assoalho de uma cidade amazônica. Aplaudi de pé, o coração disparado. 

Quando saí da sala, abri o envelope, contei as cédulas de cruzados e cheguei a um valor que dava para alimentar meu gato por três meses e ainda levá-lo a um bom veterinário.

Leon, Leon, meu querido e inesquecível felino de rua, agora aos meus cuidados e, de agora em diante, com a pança cheia e uma consulta marcada. A pelagem da cor de açafrão, o olhar aceso e misterioso, o miado rouco e indômito, tudo nele lembrava um filhote de onça vermelha.

Algo dentro de mim - talvez minha esperança teimosa - dizia que a estatueta do Baiacu de Ouro fosse realmente de ouro. Bom, o peixe inteiro de ouro maciço seria pedir muito, mas de ouro pelo menos as barbatanas, de ouro uma pontinha da cauda ou um dos olhos. Mas não: era uma estatueta de latão, toda dourada: mera fantasia para um escrevinhador de mundos fantasiosos.

Comprei muitos jaraquis para o meu Leon, dei-lhe uma cama digna e um colchão novo: pedrinhas brancas e polidas, que nem ovos de codorna. Enfim, dei a Leon o próprio Baiacu, para que ele sonhasse com um peixe enorme, fora d'água. A estatueta, cravada num cubo de madeira, prendia a porta aberta do balcão, assim evitaria o barulho quando o vento enraivecia. O bater de portas é um dos grandes traumas da minha infância, quando esse barulho seco, terrível e inesperado me sobressaltava em noites de tempestade. E como a porta do balcão era a única rebelde do meu lar, designei a estatueta para ser sua sentinela diuturna. Lembro que Leon aproximava-se do baiacu, eriçava as orelhas e afiava as garras, ensaiando o salto certeiro. Quando entardecia, os raios de sol, mais amansados, incidiam magicamente sobre o latão, criando reflexos estranhos que enfeitiçavam o felino. Penso que ele não via apenas um baiacu, via também cardumes cintilantes, refletidos no vidro da porta; talvez visse uma possibilidade real de nunca mais passar fome, como milhões de gatos de rua, seus semelhantes paupérrimos, sem prêmios, sem consultas, afagos ou jaraquis. Sem nada. E quando Leon decidiu dar o bote fatal e abocanhar sua presa, percebeu que esse peixe era de mentira, como se dissesse que os prêmios, de algum modo, são apenas fantasias fugazes.

O tempo passou, Leon ganhou um epitáfio escrito pela minha pena, e a estatueta de latão extraviou-se numa de minhas mudanças. E a vaidade daquele tempo, uma vaidade tão grande que parecia inchada, secou por completo.

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