terça-feira, outubro 04, 2011

JOÃO PEREIRA COUTINHO - Casamentos e infidelidades


Casamentos e infidelidades
JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 04/10/11 

O divórcio está a chegar. A única dúvida é saber quem abandonará a casa da moeda única primeiro

A crise da União Europeia faz lembrar alguns casamentos: enquanto havia dinheiro, a coisa rolava. Quando o dinheiro deixou de aparecer, começou a estalar o verniz da respeitabilidade conjugal.
Um amigo meu, que eu julgava intelectualmente articulado, dizia-me há tempos que a culpa da crise era da Alemanha. E acrescentava: quem pensam os alemães que são para tratar os gregos como subalternos? A Grécia deu ao mundo a filosofia. Haja respeito. De fato, haja respeito: se esse tipo de "pensamento" fosse para levar a sério, qualquer povo estaria sempre a salvo de crimes ou abusos. Os gregos gastaram o que tinham e não tinham? Mentiram nas contas? Tudo bem: Sócrates e Platão perdoam tudo.
O mais perverso dessa lógica é que ela não se aplicaria só aos gregos. Seria também aplicada aos próprios alemães: quem nos deu Bach ou Goethe pode ser perdoado por falhas posteriores. Como Hitler, por exemplo. Ou não pode?
Curiosamente, não pode: com a Grécia falida e o euro em perigo, não há dia em que os jornais gregos não lembrem supostas dívidas de Berlim a Atenas. Dívidas que remontam à Segunda Guerra, quando as tropas nazistas entraram no país. A exigência dos gregos, dispostos a ressuscitar velhos e perigosos fantasmas, é simples: paguem-nos os US$ 95 bilhões que nos devem e não se fala mais do assunto. Eis o mantra instalado na Europa: os alemães que paguem e não se fala mais do assunto. Curioso: a Europa passou a primeira metade do século 20 a combater a hegemonia germânica. Agora, nos inícios do século 21, a ideia é entregar à Alemanha a hegemonia da Europa. Desde que a Alemanha pague as contas.
O problema é que a Alemanha não quer pagar. Sim, o Parlamento do país aceitou a ampliação do fundo de resgate para evitar a falência imediata da Grécia. Mas o gesto não deve ser visto como o princípio de nada, muito menos como o primeiro passo para a emissão de dívida conjunta (os famosos "eurobonds").
O gesto deve ser visto como um fim. A sociedade alemã está cansada de um negócio onde foram enterrados os dois pilares essenciais da participação da Alemanha na moeda única.
O jornalista Wolfgang Proissl, em notável ensaio para o think tank Bruegel ("Why Germany Fell Out of Love with Europe"), explica esses pilares: a Alemanha abandonou o marco por acreditar que o euro acabaria por respeitar a tradição germânica de rigor monetário e fiscal.
Que o mesmo é dizer: o Banco Central Europeu seria independente de pressões políticas; e, mais importante, a União Europeia jamais seria convertida numa mera "união de transferências", em que os países mais ricos pagariam as dívidas dos mais pobres. A crise da Grécia -e da Irlanda, e de Portugal, e da Espanha, e da Itália- destroçou essas promessas. A compra maciça de dívida soberana dos países em dificuldades pelo Banco Central Europeu não é apenas uma grosseira violação da independência política da instituição, à revelia da própria lei europeia. É a violação de um compromisso de honra com a Alemanha.
E, sobre uma "união de transferências", ela é hoje fato consumado. No ensaio, Wolfgang Proissl é conciliador e espera que Angela Merkel mostre aos alemães as vantagens da União Europeia e do euro para a própria economia alemã. É uma esperança nobre, sem dúvida, mas duvidosa.
Para começar, a União Europeia como "projeto de paz" era um imperativo para a elite política alemã saída da guerra. Não tem o mesmo charme para a geração nascida nos anos 50 e 60, que não está disposta a carregar (e a pagar) o fardo da culpa germânica para todo sempre.
E, sobre as vantagens econômicas do euro, relembro: a Alemanha é hoje uma potência global, não apenas europeia. E haverá um momento em que as vantagens do divórcio serão maiores do que as vantagens de um matrimônio putrefato.
O divórcio está a chegar. A única dúvida é saber quem abandonará a casa da moeda única primeiro: se a Alemanha, se os países incumpridores. Uma coisa, porém, é certa: quando o divórcio chegar, os alemães serão cobertos com os piores insultos. Como sempre. Só que, desta vez, não foi a Alemanha que foi infiel à Europa. Na história desse casamento, talvez tenha sido o contrário.

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