domingo, agosto 21, 2011

CAETANO VELOSO - Entretenimento


 Entretenimento
CAETANO VELOSO
O GLOBO - 21/08/11

O filme do americano Malick é tão europeu em seu desprezo pelo aspecto entretenimento quanto um Resnais ou um Godard


Parece que não sei ver filmes. Sempre temo estar desatento para os detalhes cruciais que definem a trama. E isso acontece com frequência considerável. Mesmo assim fui crítico de cinema aos 18 anos. E agora me chamaram para ser diretor convidado do festival de Telluride, um evento de pura cinefilia. Não entendo direito os filmes. E mesmo de filmes que adoro se apagam dados do enredo. Gravo melhor os climas poéticos ou plásticos do que os fatos narrados. Qualquer amigo meu rirá ao ler isto aqui. É que tenho fama de ser um grande contador de filmes — alguns chegando a dizer que filmes são melhores contados por mim do que vistos. O que eles não sabem é que contar um filme em voz alta é um meio de eu tentar me ensinar algo sobre o que foi narrado pelas imagens. É parte do processo de percepção: narro sobretudo para mim mesmo. Por isso tudo foi um experimento e tanto assistir a “A árvore da vida”, com um amigo com quem pouco falei, e, no dia seguinte, ir sozinho ver “Melancolia”.

Eu tinha lido os artigos de Francisco Bosco e de Contardo Calligaris — e tinha gostado muito. Ambos reverberam o Nietzsche que me encantava no tempo em que Jorge Mautner era um neopagão em tudo oposto ao seguidor de Jesus de Nazareth que ele é hoje (embora fosse tão unicamente Mautner então quanto agora). Gosto de “Cinzas no paraíso”, de Malick, e detesto os filmes de Lars von Trier que vi. Mas gostei mais de “Melancolia” do que de “Árvore”. Na verdade, comecei por achar, vendo os trailers de ambos, que os dois filmes eram o mesmo. E ainda agora, tendo visto os dois por inteiro, me pergunto se não são ambos tão aparentados por serem sintomáticos do tempo que vivemos. São filmes bem diferentes, me entendam.
Quase opostos. O do americano Malick é tão europeu em seu desprezo pelo aspect entretenimento quanto um Resnais ou um Godard. Já Trier, europeu de fato, exibe o quanto aprendeu com Hollywood sobre suspense e diversão. Do “dogma” só restaram alguns jump-cuts.

Enquanto “ A árvore da vida” faz tudo para parecer “arte” mas chega a Discovery Channel e “Nosso lar”, “Melancolia” tem pedigree do mundo culto e fica à vontade para usar um subwoofer de “Transformers”
como som da presença do planeta matador.

Por que eu gostei? Bem, em primeiro lugar, Kirsten Dunst é e está irresistivelmente sexy — e é ótima atriz. E já que o filme é perfeito como entretenimento, me liguei logo na Dunst como em qualquer heroína. E, como eu não gosto de casamento, achei a Justine dela hiperlegal em seu desprezo sorridente e sincero pelos ritos. Essa menina com cara de estudante americana (e que já foi Maria Antonieta) foi escolhida por Trier para fazer uma depressiva que perdeu o medo de tudo (entendo bem isso: tive um episódio estranho de depressão há uns 14 anos e ao sair dele perdera o medo de avião que tinha tido a vida toda). Apesar do diagnóstico de Calligaris, tive raiva da mãe encarnada por Charlotte Rampling. Eu não queria que nada atrapalhasse algum prazer que aquele casalzinho pudesse ter. A cena de sexo com vestido de noiva me pareceu legitimar toda a celebração. A sequência inicial, com o jovem casal resolvendo a passagem de uma quilométrica limusine branca por uma estradinha de terra tortuosa, é extraordinariamente bem-feita e nos prende aos personagens de modo direto. Há suspense todo o tempo: as reações do cunhado, a irreverência do pai, as preocupações da irmã.

Aos poucos, os problemas anunciados pelo zelo desta vão se revelando. E Justine, que começara apresentando o noivo ao seu cavalo favorito, termina por dizer ao seu chefe da agência de publicidade que ele vale menos do que nada. Não pude deixar de ver Lars matando o espectador burguês sentado ao seu lado no curta de “Chacun son cinéma”. Nem de adivinhar que ela comeria o rapaz que lhe é apresentado pelo chefe como novo contratado da agência. É um típico filme de casamento em que os podres da vida burguesa fatalmente vão aparecer. Me contam que o “dogma” tem um exemplar paradigmático no seu DNA. Trier não fez por menos. Há uma fúria anticapitalista que não me agrada: faz pensar que a piada sobre Hitler tem mais a ver com o filme do que querem nos fazer crer. Quando Claire, a irmã que tem por que ter medo, tenta se agarrar aos restos de convenções para não admitir a morte do filho, Justine se mostra ácida quanto aos planos da irmã (tomar um vinho, sentar no terraço...). “Podemos pôr a Nona de Beethoven”, ela diz,
zombando . E quando a irmã concorda, ela a informa de que a ideia é uma merda (mas Trier põe aqueles clichês de Wagner). Em vez disso, ela fala diretamente com a criança e propõe uma proteção (que ele não sabe que é ilusória) contra a colisão do planeta com a Terra.

Pra mim, que amava ler Nietzsche contando o que disse Sileno (que a melhor coisa para o homem é inalcançável: não ter nascido), Justine, sábia por desprezar tudo, ofereceu ao menino, mas só a ele, a consolação equivalente à arte, aquela que não paga tributo à verdade (como quer o jovem Bosco).

Sinto é não estar no filme de Isa Ferraz sobre Marighella. Gosto de ler Gaspari saudando o gesto de Pedro Simon. É isso aí. Sardenberg explicando o texto de Roubini a que me referi na semana passada é instrutivo. Gosto mais de Mangabeira porque ele não é apocalíptico. Essas fantasias de fim de mundo que estão por trás dos filmes — e das nossas cabeças — não o desviam do sentido da tarefa.

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