sábado, junho 18, 2011

FERNANDA TORRES - Combustão



Combustão
FERNANDA TORRES
REVISTA VEJA - RIO


Sou leitora de orelha dos livros de ciência para milhões: física quântica, teoria do caos, do barbante, da relatividade… diz aí. Sou capaz de formular infinitas bobagens com o apanhado de informações truncadas que mal compreendo.

Já li e reli diversas vezes, por exemplo, os fundamentos da termodinâmica — ciência que estuda a relação entre a energia e o movimento —, mas me parece impossível fixá-los a contento.

A segunda lei da termodinâmica trata da reversibilidade dos fenômenos físicos. Suas implicações são amplas, envolvem conceitos tão poéticos quanto o da entropia e o do sentido único do tempo. É possível observá-las no resfriamento de uma xícara de café, no inexorável envelhecimento da carne ou no descontrole de uma crise social.

A insatisfação dos bombeiros cariocas com as suas condições de trabalho e o próprio soldo foi mantida sob a pressão crescente da falta de interlocução com os seus superiores. Dificilmente um sistema se manterá em equilíbrio debaixo de tamanho stress. A tensão explodiu na desastrosa invasão do quartel central da corporação.

Eu me sinto tão ignorante diante da física quanto perante a política de segurança pública. Não sei até que ponto a revolta foi insuflada por interesses eleitoreiros, não sei quanto os bombeiros deixaram de ser ouvidos, provavelmente tudo isso ocorreu simultaneamente.

A insurreição é uma ameaça imperdoável à ordem, quanto mais em uma cidade como o Rio de Janeiro, que enfrenta o drama dos conflitos armados nas ruas. Tal comportamento, vindo de uma das poucas instituições vistas com traços de heroísmo pela população, causa estupefação e abre precedente para que futuras negociações aconteçam na base da paulada.

Imagine um motim dessa natureza em um setor da polícia…

O estado reagiu duramente. Naquela altura, não havia como ser diferente.

O fato levou um pai de família, como o cabo bombeiro Denílson Fábio da Silva Oliveira, de 36 anos, à prisão. Denílson salvou pessoas e resgatou corpos nas tragédias da Região Serrana e do Morro do Bumba. O que levaria alguém como Denílson a se transformar em um dos chamados vândalos da rebelião? Ingenuidade? Camaradagem? Falta de saída? De dinheiro? Perfil violento?

Como é possível pular da posição de mocinho para a de vilão de maneira tão abrupta?

Existe um monstrengo matemático com a esquisita alcunha de Calabi-Yau. Ele me foi apresentado em um livro sobre a teoria das supercordas. Não entendi nem um centésimo do conceito, mas isso não me impediu de me impressionar com o ser errante.

O Calabi-Yau, entre outras aplicações, lida com a irreversibilidade dos fenômenos e dos acontecimentos.

A geometria algébrica o apresenta como um espaço emaranhado que se dobra sobre si mesmo em incontáveis nós. Lembra uma gravura de Escher elevada à enésima potência.

Quando atiçado por alguma variante numérica, o Calabi-Yau se transmuta em outro novelo, e depois em outro, e em outro, outro, outro… até que interrompe a progressão esperada e, como que rasgando o tecido do qual é feito, salta de um estado para outro, inteiramente desconectado de sua origem. Se fizéssemos o caminho contrário ao do experimento, seríamos incapazes de deduzir a sua configuração primeira devido a esses hiatos de comportamento.

Não se adivinharia o vândalo no Denílson das enchentes. Tachá-lo de marginal é apertar o nó até arrebentá-lo. A única saída é a distensão.

A libertação dos amotinados reverteu o quadro de endurecimento para o qual parecía­mos caminhar. Apoiar os bombeiros não implica concordar com atos de vandalismo. É preciso enquadrar o pelotão, mas a sua punição deve levar em conta as possíveis intransigências ocorridas e a dureza do serviço.

É isso, ou assistir a um desdobrar sem fim de Denílsons. Talvez, até, fardados.

Todos nós merecemos uma polícia menos desesperada e uma sociedade menos vulnerável à terrível indiferença das leis da física.

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