sexta-feira, maio 20, 2011

RUY CASTRO - Meros funcionários


 Meros funcionários
RUY CASTRO 
FOLHA DE SÃO PAULO - 20/05/11

RIO DE JANEIRO - Certo livro didático está na berlinda por propor que as pessoas possam fugir da norma culta da língua portuguesa e dizer "Os livro" e "Nós pega os peixe". De fato, as normas existem para ser transgredidas -mas por quem de direito. Eis alguns que fizeram isto no romance, na música popular e na poesia. E o fizeram muito bem.
Guimarães Rosa reinventou a língua criando palavras como "ensimesmudo", "sussurruído", "engenhingonça", "coraçãomente", "infinilhões", "homenzarrinho" e muitas outras. Essa língua só existia em seus livros. Adoniran Barbosa escreveu "Arnesto", "brabuleta", "pogréssio" e "nóis não semo tatu" porque fazia um tipo, um personagem. Não falava assim na vida real e não gostava quando parafraseavam suas letras, mesmo mantendo sua gramática particular.
Ferreira Gullar detonou a língua nos versos finais de "A Luta Corporal", ao escrever "Urr verõens/ Ôr/ Túfuns/ Lerr desvéslez várzens". Mas, nos anos seguintes, trouxe-a de volta aos cânones, para usá-la como ninguém. E João Cabral de Melo Neto, no poema "Uma Faca Só Lâmina", rimou "faca" com "bala" e "ávida" com "lâmina". Se lhe dissessem que essas palavras não rimam, ele diria que, nos poemas dele, rimavam, sim.
No fox-nonsense "Canção Pra Inglês Ver", Lamartine Babo misturou citações em português e inglês, resultando em "I love you/ Forget sclaine/ Maine Itapiru". E, antes dele, Juó Bananére já tinha feito paródias em dialeto ítalo-caipira de poemas conhecidos, tipo "Che bruta insgugliambaçó/ Che troça, che bringadêra/ Imbaixo das bananêra/ Na sombra dos bambuzá".
Rosa, Adoniran, Gullar, João Cabral, Lalá e Bananére não fizeram escola, nem esta era sua intenção. Continuaram únicos. Artistas podem e devem fugir da norma. Já os professores e linguistas têm de aderir a ela, como meros funcionários da língua que são.

Um comentário:

Bia disse...

Que decepção, Ruy!
O livro não ensina a falar "errado", só mostra aos alunos da EJA que há diversas variedades linguísticas, uma delas, a popular. A professora várias vezes reforça a necessidade de esse aluno se apropriar da língua culta. Leia o livro antes de falar.
Que pena,gosto tanto do que você escreve...Bia