terça-feira, maio 17, 2011

JOSÉ PAULO KUPFER - Consequências do "deixa-disso"


Consequências do "deixa-disso"
JOSÉ PAULO KUPFER

O Estado de S.Paulo - 17/05/11

Uma das inúmeras e indesejáveis consequências de uma alta da inflação, sobretudo no Brasil, é a indexação. Outra consequência é a introdução na agenda econômica da necessidade de desindexar. O problema é que, na vida real, quando a inflação está em alta, a indexação, consequência da alta dos preços, se torna causa, fazendo aguda a necessidade de eliminá-la. Mas desindexar na hora em que a indexação entra no rol das causas da inflação é tarefa inglória.

As indicações, pinçadas aqui e ali, de que o governo prepara propostas de desindexação da economia soam, portanto, mais como declaração de intenção do que algo com que se possa contar no curto prazo. Isso significa que o esforço para dissolver as pressões inflacionárias terá de ser feito com toda a indexação que permeia a economia. E com custos mais altos, pois a potência dos instrumentos de combate, a começar das taxas de juros, se dilui diante dos preços indexados, exigindo doses mais fortes dos remédios.

Se a inflação é, em essência, um fenômeno monetário, a indexação está aí para não fazer esquecer suas muitas repercussões, inclusive na estrutura social. Embora possa vir a ser olhado de lado pelos mais ortodoxos, não errará quem entender o fenômeno da inflação também como disputa de poder entre as classes sociais. Os processos inflacionários, desse ponto de vista, refletem uma corrida contra as perdas do poder aquisitivo da moeda ganha por quem consegue chegar na frente, corrigindo antes seus preços. A indexação, desse ângulo, não passa de uma saída engenhosa para evitar os conflitos distributivos que emergem na corrida contra a inflação. Não é uma jabuticaba, nem foi inventada no Brasil, mas foi aqui, terra do "deixa-disso", que seu uso foi, de longe, o mais disseminado e abrangente.

Ela surgiu no bojo da grande reforma financeira de 1964, logo após a instalação do regime militar, restrita às cadernetas de poupança, como cenoura para formação de poupança voluntária. Não demorou muito para que o mecanismo fosse usado para outros rendimentos. Na troca da estabilidade no emprego pelo Fundo de Garantia, "opção" compulsória imposta pelo regime militar, lá estava a indexação. Visto que a poupança e o fundo foram criados para dar lastro a um sistema de financiamento da construção habitacional, ela também passou a compor as fórmulas de correção das prestações da casa própria e dos aluguéis. Quando, a partir de meados dos anos 70, os preços começam a evoluir na curva que os levaria à hiperinflação dos anos 80, o mapa da disseminação da indexação já abrangia vasta série de contratos, inclusive os salários, com correção em prazos cada vez mais curtos.

Só 30 anos depois, na sequência ao Plano Real, uma medida provisória de julho de 1995 proibiu a correção de contratos com menos de um ano por índices de inflação e estabeleceu a livre negociação de salários. Isso só foi possível com o corte cirúrgico da hiperinflação, promovido por um plano econômico que teve início com uma superindexação induzida pela URV. A URV foi a criativa solução derivada da descoberta da "inflação inercial", aquela causada pela própria indexação, que estava na origem do êxito do Plano Real.

Mas o uso do cachimbo já tinha entortado a boca. A correção de contratos por índices de preços passados resistiu ao corte da inflação e continuou generalizada, alcançando hoje, apenas no plano formal, pelo menos 70% dos chamados preços livres, inclusive os salários - sem falar no salário mínimo, que voltou a ser indexado por lei. Os preços administrados, boa parte tarifas de serviços públicos, privatizados com regras de indexação contratual, respondem por 30% do IPCA, índice-base das metas de inflação. E um terço da dívida pública mobiliária mantém-se indexada à taxa de juros Selic.

Quem se aventurar a perguntar em Brasília pelo projeto de desindexação do governo deve se preparar para receber uma desconversada como resposta. Sairá da investigação, porém, convencido de que, sabedor da sua importância, o governo reconhece a ambição da empreitada. Não se trata, de fato, de encontrar uma fórmula jurídica para evitar dribles em eventuais leis que vedem a indexação. Este seria apenas o último ato de amplo, complexo e espinhoso processo de reformas, envolvendo os sistemas financeiro e tributário - que, por ironia ou não, começa na revisão da indexação primitiva das cadernetas de poupança, manobra, aliás, tentada sem sucesso há uns dois anos.

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